Uma felicidade que se reconstrói com avanços e recuos: a vida com cegueira
A realidade das pessoas cegas é um campo de autodescobrimento e reconhecimento difícil de compreender para quem não sabe o que é viver sem visão. Para muitos, o que significa uma vida condenada, é na verdade o começo de uma nova jornada a percorrer, recheada de adaptações, com instrumentos como a bengala e o braile.
“Estou sempre a imaginar, é muito automático”, é como Rute Machado, membro do Coro Misto da Universidade de Coimbra (CMUC) descreve a sensação de ser cega. Quase como um jogo de memória que vence com facilidade, a jovem, a partir da lembrança de cores, texturas e objetos vistos em criança, cria imagens mentais da realidade que a rodeia. “Percebes o mundo de outra maneira que antes não percebias, porque simplesmente não precisavas”, aponta.
Ao mergulhar nos seus pensamentos, revela que lhe custa mais aceitar a dor de quem perde a visão numa idade avançada, do que a sua própria perda. Foi com pouca idade após ser incapaz de resolver uma tarefa da escola, que se apercebeu que não conseguia ver.
“Tinha sete anos, eu não quis saber. Não me interessava, e voltei a brincar”, recorda Rute Machado. Atualmente, continua a não se importar. Foi por ter uma família que sempre lhe deu liberdade para fazer o que desejasse e, pela prática, que aceita de ânimo leve a sua falta de visão. “Nos primeiros meses a pessoa pode nem aceitar andar de bengala, mas é normal”, explica.
Glaucoma congénito bilateral foi a doença que lhe diagnosticaram logo à nascença. Aos 3 anos, implantaram lhe válvulas reguladoras da pressão ocular, que mais tarde, causaram-lhe uma infeção generalizada no sangue. Devido a esta complicação, a jovem deixou de ver do olho direito, e alguns meses depois, foi a vez do par esquerdo lhe falhar, resultante da patologia inicial e de vários descolamentos na retina.
“Aceitei que era cega, nunca mais sofri preconceito”
Numa realidade em que se defende a escola inclusiva com as mesmas igualdades e oportunidades para todos, Rute não esquece o dia em que recebeu o seu manual de filosofia na data do exame. “Os livros não chegarem a tempo era o prato do dia”, evidencia. O custo do material em braile foi também uma adversidade com a qual se confrontou e, que só ultrapassou graças ao esforço dos seus pais.
No presente, é estudante na Faculdade de Direito da UC, e os dissabores converteram-se em preconceito, nomeadamente por parte de um docente. Para a jovem, a formação que o professor detinha de nada lhe servia, visto que lhe faltava civismo. Subitamente veio-lhe à memória um episódio em que solicitou ao profissional que lhe fornecesse materiais pedagógicos acessíveis, pedido que foi ignorado. “A partir do momento em que aceitei que era cega, nunca mais sofri preconceito”, clarifica.
Numa fase em tudo parecia correr mal, encontrou um conforto no CMUC. Foi numa sala ampla, com os mais distintos objetos, desde jogos de tabuleiro a partituras musicais, que encontrou uma família no sítio mais inesperado. “O coro é um centro de amor e carinho. Se não fosse ele, eu não estava aqui”, revela de sorriso no rosto.
Em tons azuis e brancos, talvez por simbolizar calma e tranquilidade, tinge-se a delegação de Coimbra da Associação dos Cegos e Amblíopes de Portugal (ACAPO). Composta por um bar, uma sala de informática, um cómodo de reabilitação, um salão de festa e um local de formação é neste espaço que muitos entram porta adentro à procura de reconstruir a sua vida.
“Aos 18 anos ceguei completamente”, conta o presidente da ACAPO, José Caseiro. Portador do transtorno oftalmológico glaucoma, foi perdendo a visão aos poucos, apesar de ter sido operado. A convivência com amigos cegos permitiu-lhe encurtar o seu período de luto: “foram eles que me ajudaram nessa altura nas tarefas, e depois fui ganhando experiência e confiança”, relata.
Perder a visão forçou-o a reaprender vários aspetos, que para muitos não passam de simples hábitos do dia a dia. Os obstáculos nas ruas como carros mal-estacionados, o uso da bengala e o braile foram as principais adversidades que se puseram no seu caminho. "Foi uma frase de aprendizagem muito morosa", confessa.
Natural da Guarda, com 7 anos mudou-se para Coimbra para frequentar uma escola especial, destinada a crianças com cegueira e baixa visão. Nesse colégio, além do braile, ensinaram-lhe a realizar atividades do dia a dia. Segundo o dirigente, essas instituições eram “muito boas”, pois a formação dos alunos visava torná-los autónomos.
Em seguida, permaneceu até aos 17 anos na Comunidade Juvenil Francisco de Assis, em Eiras, uma casa de acolhimento inclusiva com o lema “liberdade na responsabilidade”. Lá havia “pessoas cegas, com baixa visão, problemas motores, órfãos e de outras etnias, como africanos”, refere o presidente. Tão importante como o uso do braile e bengala era ensinar às crianças e jovens residentes a realizar as suas tarefas pessoais, como arrumar a cama, lavar a roupa e limpar o quarto.
No seu tempo, enquanto universitário já tinha perdido a visão, o que o forçou a reaprender tudo, e que recorda como “um processo que se faz lentamente”. Nos anos 90, com a introdução do ensino inclusivo, sistema baseado na ideia de que todas as crianças devem frequentar o mesmo local de ensino, desapareceram as escolas especiais. José Caseiro defende que, nos dias de hoje, as escolas “não estão preparadas para dar respostas tecnicamente muito especializadas”.
Aprender a recomeçar
A ACAPO surgiu em 1989, a partir da fusão de três associações existentes, uma no Porto e duas em Lisboa das quais, José Caseiro já era sócio. Na altura, era estudante universitário e trocava os subsídios financeiros que recebia por cassetes de áudio para gravar os seus livros e aulas.
Já na década de 90, pela sua mão e dos seus amigos, foi aberta a delegação de Coimbra, que nunca mais deixou. A associação é constituída por voluntários, funcionários, sócios efetivos e cooperantes. A última designação equivale aos amigos da ACAPO constituída por pessoas sem problemas de visão, que por solidariedade contribuem para a causa. Já a nível interno, o centro possui uma equipa de reabilitação composta por uma assistente social, um psicólogo, uma técnica de mobilidade, uma terapeuta ocupacional, um técnico de informática, entre outros especialistas.
O presidente sublinha que na ACAPO se faz “o trabalho que as escolas, deviam fazer, em muitas dessas áreas” de modo a motivar as pessoas a aprender e poder recomeçar. Refere ainda que o grupo de pessoas adultas a perder a visão é cada vez maior, aparecendo na sua porta todos os dias novos pacientes à procura de colorir a sua vida outra vez.
Durante quase três décadas a associação dinamizou também cursos de formação profissional, financiados pelo Centro de Emprego, para que os seus membros se instruíssem e integrassem o mundo do trabalho. Interessados de várias regiões batiam assim às portas da ACAPO, com a esperança de reconstruírem uma vida autónoma. Com o tempo, as salas de formação começaram a esvaziar-se, tornando a existência destes cursos insustentável.
No domínio externo, são várias as parcerias da ACAPO com entidades de cultura, como o Museu de Papilhosa da Serra, o Teatro Académico Gil Vicente e o Coro Sinfónico de Coimbra. Um inesperado silêncio percorria o espaço da delegação, resultado de um projeto entre a ACAPO e O Teatrão. A partir de um financiamento de 50 mil euros pelas fundações La Caixa e Calouste Gulbenkian, os membros foram desafiados a desenvolver um grupo de teatro que teria de apresentar à cidade uma peça. Já lá vão três anos deste programa, e faltando um mês para a apresentação do seu último espetáculo, naquele momento os membros encontravam-se no ensaio.
Contudo, visto que “não se conseguiu novo financiamento, este projeto pode ter os dias contados”, explica José Caseiro. O desporto é também visado pela associação, mediante uma colaboração como o Sport Clube Conimbricense, que disponibiliza o seu pavilhão para que os associados pratiquem algumas modalidades como o ‘goalball’ e o ‘showdown’.
A inconstância de voluntários
Com 40 anos de existência, a falta de voluntariado é um problema que assola a ACAPO desde o final da pandemia. “Nas nossas atividades tínhamos sempre muitos voluntários e isso perdeu-se um pouco”, esclarece José Caseiro. Revela ainda que um dos seus objetivos sempre foi arranjar uma rede de estudantes voluntários. Neste sentido, encontram-se inscritos em vários grupos de voluntariado “das Faculdades de Medicina, Psicologia e da Associação Académica de Coimbra”. Contudo, a presença estudantil é inconstante, o que o presidente acredita ser resultado das épocas de exames.
A falta de candidatos à presidência é também uma problemática sentida pela associação espelhada nas eleições passadas à qual concorreu apenas José Caseiro. A pouca representatividade apresenta-se assim como uma ameaça ao diálogo com entidades da cidade para a promoção de novas iniciativas.
“A acessibilidade está nas pessoas”
Apesar dos esforços feitos até ao momento, Coimbra está longe de ser uma cidade de fácil circulação para quem sofre de alguma deficiência. Os Serviços Municipalizados de Transportes Urbanos de Coimbra permanecem como um “grave problema”. Os pioneiros na introdução de um sistema de voz nestes serviços verificam, no entanto, problemas com a sua eficiência, pois só funciona por vezes. José Caseiro refere ainda a importância da adição de um altifalante junto à porta dos autocarros de modo que os passageiros que estão a aguardar a viatura, consigam perceber individualmente se é o seu transporte ou não. “Há 20 anos que andamos a lutar por esta acessibilidade”, reforça.
Os passeios com obstáculos e o avanço da tecnologia são mais um obstáculo que se atravessa no seu caminho. Fenómenos como o ‘touch’ ou o ‘contact less’ dificultam algumas das tarefas diárias destas pessoas, como pagamentos ou mexer nas próprias máquinas de multibanco. “A tecnologia avança, mas deixa para trás algumas pessoas”, sublinha o presidente.
Para Rute Machado, andar pela cidade é uma complicação, principalmente pelas obras, que levam à mudança das paragens de autocarro e, ainda, pela falta de passadeiras identificadas. A faculdade onde estuda é também um exemplo de inacessibilidade, o que se explica por ser um espaço “muito amplo, sem guias no chão”.
Contudo, apesar dos entraves físicos nas ruas da cidade dos estudantes, para si a verdadeira acessibilidade está nas pessoas. “Coimbra dá uma chapada de mão aberta na cara de muitas outras cidades maiores”, realça a coralista. Para si, a acessibilidade está numa criança de seis anos, ou numa idosa, que se preocupam em atravessar consigo a estrada.