"Faleceu D. Universidade Velha"

O papel essencial das repúblicas e dos organismos autónomos da AAC na luta estudantil de Coimbra, em 1969

“Quando entrei na sala, pensei para mim próprio: «isto não vai ter grande efeito, estou sozinho, eles vão-me prender». Mas, entretanto, entram os meus colegas que ocupam toda a sala. Quando os vi, pensei: «a batalha está ganha»”, contou Alberto Martins ao jornal A Cabra, em 2009.

A luta dos estudantes por uma universidade democrática e para todos já dura desde o início da década de 1960 e a pressão da ditadura é cada vez mais dura de suportar. Por toda a cidade, a vontade de mudança é grande e todos os dias mais evidente. Os estudantes da Universidade de Coimbra estão mais unidos que nunca na luta contra uma educação elitista.

As repúblicas e os organismos autónomos da AAC são das células mais relevantes na comunicação e organização dos estudantes. É a partir deles que a informação circula, que os movimentos são desenhados e que se prepara a revolução.

Nas repúblicas, a discussão e a democracia são constantes entre as paredes que a Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE) não passa. No Conselho de Repúblicas (CR) fala-se do regime, da universidade, da cidade, do reitor, de tudo. No entanto, o organismo não é reconhecido legalmente, pelo que a polícia política não pode intervir, ainda que represente uma afronta ao regime.

“A PIDE não nos podia destruir porque o CR não era legal, eram apenas reuniões de casa”, explicou à Cabra Celso Cruzeiro, antigo presidente (Louco Mor) da Real República Palácio da Loucura.

A falha na lei que oferecia vantagem às repúblicas, não se estendia aos organismos autónomos, que podiam ser fechados pela polícia ou chamados a prestar satisfações. Ainda assim, o edifício da Rua Padre António Vieira era como uma pequena muralha que protegia a conspiração contra o governo de Américo Thomaz, recorda João Viegas, antigo membro do Círculo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra (CITAC).

Lá dentro, o Centro Experimental de Rádio – hoje a Rádio Universidade de Coimbra - emitia experimentalmente num circuito interno na AAC, através de pequenas colunas; desenhavam-se cartazes de protesto; estabeleciam-se estratégias; circulavam informações, recados, fotografias dos movimentos estudantis.

Alguns ex-integrantes de organismos autónomos, como Luís Pais Borges do Grupo de Etnografia e Folclore da Academia de Coimbra (GEFAC) ou João Viegas do CITAC, consideram que os estes grupos tinham maior facilidade em desenvolver estratégias para perturbar atividades do regime ou para difundir informações. Começando pelos espetáculos, que ofereciam alguma proximidade com o público e saídas da cidade. “Acabava sempre por se passar alguns recados”, admite Luís Borges.

“O Badalo”, um jornal do organismo das repúblicas, era a forma privilegiada de difusão de ideias. O CR aproveitou, mais uma vez, uma brecha na lei que dispensava as publicações não periódicas, diárias ou semanais de revisão pela Comissão de Censura. O jornal teve três edições que esgotaram cada uma em poucos minutos à porta das faculdades.

Rui Namorado, foi residente da Real República Os Pyn-Guyns e descreve à Cabra que nas repúblicas também vigiavam os agentes da PIDE: “havia uma central de escuta dentro de uma das repúblicas que tinha a frequência da polícia e sabíamos o que eles estavam a dizer e onde o estavam a fazer”.

16 de abril de 1969

Coimbra já dorme, mas na Rua Padre António Vieira a discussão está acesa. Pondera-se se os estudantes hão de intervir e marcar a sua posição ou se hão de ceder ao medo da destituição da direção da associação académica. Está decidido: o presidente da Direção-Geral, Alberto Martins, pede a palavra.

Dentro do edifício da AAC, estudantes vão-se repartindo entre pintura de cartazes e distribuição de cartas pelas repúblicas, a fim de mobilizar todos os estudantes para estarem presentes na cerimónia de inauguração do novo edifício das Matemáticas. Está marcada para a manhã seguinte e esperam-se as presenças do Presidente da República, Américo Thomaz, e do Ministro da Educação, José Hermano Saraiva, entre as de outras personalidades do Governo.

17 de abril de 1969

Alberto Martins já está dentro da sala e aguarda as figuras do regime. De rompante, entram dezenas de colegas, que enchem a sala por completo. “A batalha está ganha”.

A cerimónia de inauguração tem lugar, enquanto os estudantes aguardam pacientemente. Discursam os ministros e o presidente da DG/AAC levanta-se: “Senhor Presidente da República, em nome de todos os estudantes da Universidade de Coimbra, peço para usar da palavra”. O pedido foi lhe negado e a revolta instalada.

João Viegas recorda que, nesse dia, estavam centenas de estudantes nas Matemáticas, dentro da sala, no corredor, na rua, incluindo muitos membros quer do CITAC, quer de outros organismos autónomos. Segundo conta, à medida que os elementos do Governo iam saindo, eram lhes arrancadas as medalhas, rasgando as fardas. “Há repúblicas que ainda têm algumas de recordação. Eu próprio andei com uma durante muito tempo, nem sei de quem era ao certo, era de um deles”.

Nessa tarde, a massa estudantil reúne-se nos jardins da associação académica para discutir o que fazer quanto ao futuro. O estabelecido é que nenhum dirigente associativo deve dormir em sua casa e que Alberto Martins deve ser o último a deixar o edifício.

Por volta das duas da manhã, ao sair da AAC por último, como combinado, o presidente da Direção-Geral é levado pela PIDE. A detenção dá início a uma ronda de telefonemas entre repúblicas, mobilizando toda a gente para as instalações da polícia política, na Rua Antero de Quental. Os estudantes exigem a libertação de Alberto Martins.

O dirigente esteve preso durante poucas horas. Outros não tiveram o mesmo destino. João Viegas ficou detido nas instalações da PIDE por três meses e com ele mais cem ou 200, relata. Na época, era delegado de curso do terceiro ano jurídico e foi suspenso da faculdade por ter aderido ao movimento estudantil contra a ditadura.

Alberto Martins descreveu, 40 anos mais tarde, ao jornal A Cabra, os dias que se seguiram: “a academia fez greve às aulas com uma grande adesão, inclusive dos professores. Depois, o governo encerrou a universidade e nós decidimos fazer então a greve aos exames. Fizemos piquetes de greve, fomos espancados, presos pela Polícia Judiciária, levados a tribunal”.

O luto académico tinha sido decretado em Assembleia Magna, dia 22 de abril daquele ano. Pouco mais de 10% dos alunos realizou os exames esse verão e os serões eram passados nos jardins da associação académica, ao som de Zeca Afonso, Carlos Paredes ou Adriano Correia de Oliveira.

“Em agosto, após a greve aos exames, a AAC é encerrada e 49 de nós são incorporados compulsivamente no exército, como traidores à pátria”, relata o da DG/AAC em 1969.

José Pio Abreu é antigo membro da Tuna Académica da Universidade de Coimbra. Também residiu no Palácio da Loucura na década de 60 e foi um dos estudantes enviados para a Guerra Colonial. Em entrevista ao Jornal A Cabra, o ex-repúblico contou que o juntaram aos “mais ativistas que a PIDE conhecia” e todos foram “incorporados de castigo”. Ao chegar à Guiné, recorda-se de ter sido muito bem recebido por ser estudante de Coimbra e diz que o maior erro cometido pelo Governo foi mandá-los para a tropa. Segundo explicou, os militares sabiam que eles lá estavam porque eram contra o regime e a guerra. “Fomos influenciar os outros, eles vinham ter connosco e diziam-nos que também eram contra”, relatou.

“O 25 de abril nasceu em Coimbra de 1969”, reitera José Pio Abreu.

João Viegas também foi mandado para a Guiné, para “uma selva inóspita, cheia de cobras, mosquitos, crocodilos e minas”, lembra. “Era assustador poder entrar num caminho de terra batida, rebentar uma mina e desaparecer ou poder ser abatido ou poder levar uma mordidela de uma cobra e morrer em minutos”.

João Viegas na Guerra Colonial, em 1971 - Fotografia cedida pelo próprio

João Viegas na Guerra Colonial, em 1971 - Fotografia cedida pelo próprio

A crise académica de 1969, em Coimbra, impulsionou a revolta de um país sob censura, cinco anos mais tarde. O que começou com estudantes foi ganhando terreno e alcançando novos apoiantes.

“A universidade, os professores, os funcionários e a cidade de Coimbra estiveram ao lado dos estudantes em 1969. E isso foi conseguido pela capacidade dos estudantes de fazer sentir que a sua luta era justa. Era uma luta pela liberdade, por uma universidade melhor, por um país melhor”, disse Alberto Martins à Cabra, em 2009.

José Pio Abreu relembra, também em entrevista à Cabra, em 2019, que, “em vez de andarmos à pancada, dizíamos aos guardas que estávamos a trabalhar para os filhos deles poderem ir para a universidade. Nós não guerreávamos com ninguém. Pelo contrário, tentámos conquistar as pessoas. Sabíamos que tínhamos razão e, pouco a pouco, outros foram-se juntando a nós”.

Alberto Martins:

“Em 1969, os estudantes de Coimbra estavam do lado certo da história. O lado certo da história é sempre o lugar da liberdade”.

Fotografias retiradas do Jornal Universitário de Coimbra - A Cabra