A história de uma cidade contada pelo prazer de um café e um crúzio
100 anos de Café Santa Cruz

Por baixo da luz que se derrama pelos vitrais do centenário Café Santa Cruz, num ambiente místico de memória e reencontro, bebe-se um café, come-se um crúzio e, ao som de Fado de Coimbra, revive-se e vive-se a história da cidade. Um espaço que já teve várias funções e designações, hoje permanece, passados 100 anos, um lugar de recuperação histórica e cultural, de sociabilidade e partilha. O Café Santa Cruz está instalado no Mosteiro de Santa Cruz, fundado em 1131, pela Ordem dos Cónegos Regrantes de Santo Agostinho, com o apoio de D. Afonso Henriques e de D. Sancho I, que nela se encontram sepultados. Este é um espaço emblemático da cidade, reconhecido, em 2003, como Panteão Nacional.
A par do seu valor histórico, arquitetónico e cultural, o Café Santa Cruz é dotado de uma energia singular. Vítor Sá Marques, um dos gerentes do café, considera este espaço “diferenciador, pela sua longevidade e pelo espaço que ocupa”. A par disso, é também um reflexo das diferentes gerações de gerência e funcionários que por aqui passaram, das esplanadas cheias, das mesas gravadas com homenagens a grupos de tertúlia, das paredes da capela-mor enfeitadas com pinturas e das caras familiares que fazem deste espaço a sua segunda casa. No entanto, de acordo com o responsável, é principalmente um espelho “do legado deixado pelos antepassados” e da vontade de “conquistar as novas gerações”.
100 anos de História, Memória e Vida
"O edifício onde está o Café Santa Cruz é o edifício que alberga há mais tempo atividade comercial, pelo menos desde 1876", sublinha Vítor Sá Marques. Ligado à Igreja de S. João de Santa Cruz, construída em 1530, este espaço servia de lugar de encontro espiritual a todos os cidadãos de Coimbra. Em 1834, findada a Guerra Civil Portuguesa, num contexto mundial de Revolução Liberal e modernização, inicia-se um processo de extinção das Ordens Religiosas, que estavam responsáveis pela gestão do espaço. Esquadra da polícia, estação de bombeiros, casa funerária e estação de correios são algumas das outras vidas que este espaço assumiu.

A inauguração do Café Santa Cruz aconteceu no dia 8 de maio de 1923, encabeçada por Adriano Ferreira da Cunha, Adriano Viegas da Cunha Lucas e Mário Pais, que idealizaram este projeto como um Café-Restaurante com uma projeção nacional de referência. Para isso, foi necessário investir na reabilitação arquitetónica do edifício, em particular da fachada e da abóbada. Segundo o arquivo do Café Santa Cruz, existem registos em jornais da época - Jornal Gazeta de Coimbra - que explicam que as restaurações procuraram "respeitar o traçado original", que se havia perdido com o uso.
Fotografias de arquivo do projeto para modificação da fachada:

Arquivo - site Café Santa Cruz
Arquivo - site Café Santa Cruz

Arquivo - site Café Santa Cruz
Arquivo - site Café Santa Cruz
Um ano depois da Revolução de 25 de abril, em 1975, sob a gerência de Alexandre da Silva Marques (pai de Vítor Sá Marques), o estabelecimento deixou de servir refeições, passando apenas a fornecer serviço de cafetaria. Estes foram tempos mais conturbados da gerência do espaço, que levaram a que fosse necessário repensar a dinâmica da casa.
Este é um problema que se revela transversal na história do café: a instabilidade económica e a atração de consumidores. Vítor Sá Marques revela que, ainda hoje, "se não existirem clientes tudo o resto fica em causa, porque são eles que permitem manter a porta aberta". Passados 100 anos, os objetivos mantêm-se: "acrescentar legado àquilo que nos deixaram e, acima de tudo, conquistar novos clientes".
Este tem sido um trabalho desenvolvido nos últimos anos por Vítor Sá Marques, José Cruz e Paulo Gonçalves. No sentido de valorizar a memória do espaço e promover a sua conservação, a equipa de gerência do Café Santa Cruz tem preparado o futuro com especial atenção. Nas últimas duas décadas foram realizadas obras de reabilitação e renovação da logística e funcionamento do estabelecimento, dinamizados diversos eventos culturais e desenvolvidos programas de revisitação e comemoração histórica.
A criação do doce Crúzios, em 2012, o lançamento de três CD's de Fado de Coimbra - tendo o terceiro sido lançado em setembro do ano passado - e a organização do programa "Um Café a Caminho do Centenário", são algumas das atividades destacadas. Realça-se ainda a integração do Café Santa Cruz na "Rota dos Cafés com História de Portugal", em 2014, desenvolvida no âmbito da Associação dos Cafés com História de Portugal, à qual Vítor Sá Marques preside.

Em 2013, o Café Santa Cruz é condecorado com a medalha de ouro de mérito empresarial da cidade de Coimbra e, em 2017, passa a fazer parte do Guia de Turismo da Região Centro, publicada pelo Jornal de Notícias. Vítor Sá Marques refere que a melhor forma de homenagear a história deste lugar é assegurando que este se mantém vivo e isso é possível pelo trabalho atento "das novas modas comerciais" e pelo acompanhamento das mais recentes gerações.
Neste momento, um dos principais objetivos que motivam o trabalho da equipa do Café Santa Cruz passa também por tornar uma "preocupação dos turistas procurar os cafés que servem de ponto de encontro das localidades que estão a visitar", da mesma forma que visitam os restaurantes e museus de renome. "O maior projeto do café é ser uma referência nos Cafés Históricos em Portugal", declara o gerente.












Centenário
Preparar os próximos 100 anos é uma forma de celebrar os 100 anos que passaram. Vítor Sá Marques acredita que o café deve estar com os olhos no futuro, tendo em vista a manutenção do serviço. A programação das comemorações dos 100 anos traduziu esta ideia, ao compreender atividades de debate e reflexão sobre o espaço, o seu futuro e a sua posição no panorama comercial nacional e europeu.
O primeiro dia do programa contou com a presença de Angela Drakou, presidente da Historic Cafés Routes, que entregou aos Cafés Históricos de Portugal um certificado da associação. No segundo dia, Arnold Klingeis, embaixador da Historic Cafés Route na Roménia apresentou o seu projeto "European Cultural Travel Program for Romania".
A discussão sobre a inclusão dos Cafés Históricos de Portugal numa rota europeia que passe pelas suas mesas já é desenvolvida há alguns anos e tem promovido encontros internacionais entre responsáveis de cafés emblemáticos na Europa. Em abril de 2018, responsáveis de Cafés Históricos de diferentes países juntaram-se no Café Santa Cruz para “dar a conhecer a associação e discutir os problemas comuns”, conta Vasilis Stathakis, fundador e presidente da EHICA - Associação Europeia dos Cafés Históricos, ao Público.
Um dos desafios correntes do Café Santa Cruz consiste na conquista de maior projeção a nível nacional pela instituição do Dia Nacional do Café Histórico. Esta iniciativa tem sido trabalhada em parceria com a Associação da Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal (AHRESP) e a Associação Industrial e Comercial dos Cafés (AICC), que promoveram duas atividades. No ano passado, foi proposta a celebração oficial do Dia Nacional do Café Histórico no dia 14 de abril, no café Brasileira, em Lisboa. Este ano, "os cafés que quiseram fizeram algumas iniciativas no sentido de oficializar este dia e reconhecer legalmente estes espaços" como património cultural e histórico, relata Vítor Sá Marques.

Saltando pela história de vida do Café Santa Cruz, vejamos com particular atenção alguns dos principais momentos.
Do outro lado dos vitrais

100 anos de Promoção Cultural

Café Histórico de Portugal
Entre os próximos projetos, segundo Vítor Sá Marques, "a Rota Cultural dos Cafés Históricos Europeia também precisa de ser bastante dinamizada". Ser referência no panorama nacional é ambição do café.

Exposições
São realizadas exposições na capela-mor do café e expostas relíquias históricas e peças de artesanato de artistas locais. Destaca-se a exposição de jornais (entre 1861 e 1924) que retratam a evolução da história do café e outra de pinturas a aguarela de Cafés Históricos de Portugal.

Tertúlias
Grupos de debate e tertúlia continuam a escolher o Café Santa Cruz para reunir, todas as semanas, há vários anos. Existem duas mesas personalizadas em homenagem a dois destes grupos. Vítor Sá Marques conta que alguns clientes habituais fazem questão de ser servidos nestas mesas em específico.

Fado de Coimbra
Grupos de Fado da cidade homenageiam diferentes nomes da Canção de Coimbra, num lugar que prima pela recuperação e valorização da tradição. Já existem três edições do CD de Canção de Coimbra, editadas pelo Café Santa Cruz. A terceira foi apresentada no passado dia 8 de maio, no âmbito das comemorações do centenário.

Convívio
Em primeiro lugar, este é um espaço de consumo e de convívio. Neste café é também comum reunir amigos e colegas para sessões de conversa e trabalho. "Quando alguém pede para utilizar o espaço, digo-lhes sempre para não se esquecerem de que, antes de tudo, se trata de um café, onde pessoas entram e saem e fazem barulho. No entanto, as pessoas já conhecem a logística e sentem-se à vontade para vir aqui apresentar os seus projetos", diz Vítor Sá Marques.

Outras Atividades
O Café Santa Cruz é "um espaço que está disponível para ser utilizado por todas as pessoas, independentemente da cor, género, nacionalidade, crença ou ideologia política", comenta o gerente. Além do que já foi referido, o espaço é cedido para a realização de outras atividades de forma gratuita, como apresentações de livros, mostras de artesanato urbano, debates políticos, apresentações de teatro e música, entre outras.
Paulo Largueza (viola de acompanhamento), Luís Marques (guitarra de Coimbra) e Manuel Pinheiro (voz)
Paulo Largueza (viola de acompanhamento), Luís Marques (guitarra de Coimbra) e Manuel Pinheiro (voz)
O Crúzio
Enquanto ainda era Café-Restaurante, o Café Santa Cruz fazia serviço de catering em casamentos, onde teve origem a receita do típico bolo Crúzio. O nome do bolo foi atribuído em referência aos Cónegos Regrantes que habitavam no Mosteiro de Santa Cruz e eram conhecidos por Crúzios. Na caixa onde se vende o doce conventual encontramos um texto da autoria do Padre Dr. José Bento Vieira, antigo Cónego da Diocese de Coimbra e Prior da Igreja de Santa Cruz, onde se lê o seguinte:
"Os Cónegos Regrantes que habitavam em Santa Cruz eram denominados por “Crúzios”. Esta designação era extensiva a todos os que viviam à sombra do Mosteiro e que, embora residindo fora, estavam agregados à instituição. D. Afonso Henriques era também Crúzio, dado que foi um dos fundadores, tendo “professado” como elemento da Ordem Terceira de Santa Cruz. O painel de azulejos aqui retratado está situado no lado esquerdo da Capela-Mor da Igreja de Santa Cruz e mostra-nos D. Afonso Henriques a ser admitido à Ordem, com o Prior a impor-lhe o hábito".






Torre dos Clérigos. The most iconic and visible of Porto's many Baroque buildings.
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Ponte Luiz I. A cast iron bridge in the middle of Porto's old town. Look familiar? It was designed by a disciple of Gustave Eiffel.
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A modern tilt to the Baroque landscape: the Casa da Música
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If you aren't stopping for custard tarts, you aren't doing Porto right.
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Crúzios
Crúzios
Entre fados, doces e poesias, o Café Santa Cruz viu famílias crescer, filhos tornarem-se pais, pais tornarem-se avós. Visitar um lugar que transpira Coimbra é também relembrar a história destas pessoas, algumas das quais continuam a fazer do prazer de um café e um crúzio um costume indispensável do seu dia. Recuperar e conservar estas memórias é um dos projetos que Vítor Sá Marques quer explorar com mais detalhe num futuro próximo, através de um arquivo fotográfico, que já foi transformado em livro, e do registo escrito das demais histórias que estas paredes sagradas guardam.
É com aplausos que deixamos uma casa cheia de gente que se junta na comemoração de uma vida longínqua, cuja história ainda está por construir.
Paulo Largueza (viola de acompanhamento), Luís Marques (guitarra de Coimbra) e Manuel Pinheiro (voz)
Paulo Largueza (viola de acompanhamento), Luís Marques (guitarra de Coimbra) e Manuel Pinheiro (voz)