60 anos do Dia Nacional do Estudante
Jornal Universitário de Coimbra A Cabra
Em memória de Cesário Silva
As gerações que Coimbra formou
Para marcar o Dia do Estudante, o Jornal A CABRA decidiu falar com três gerações de estudantes que tiveram as suas vidas marcadas por Coimbra. Existem diferenças, mas há também semelhanças que unem estas gerações no percurso da sua vida académica. Desde um estudante preso na Crise Académica de 1962, passando por um seccionista envolvido na cultura e desporto, até um presidente da Direção-Geral da Associação Académica de Coimbra (DG/AAC), sessenta anos separam estes relatos.
Por Jorge Botana e Gabriela Moore
Jacinto Rodrigues, um dos “41 de Caxias”
Nascido em Luanda, em 1939, Jacinto Rodrigues veio para Portugal, em 1960, estudar Filosofia na Universidade de Coimbra (UC). Apesar de só ter estado na cidade um ano antes de pedir transferência para Lisboa, manteve a ligação com Coimbra por causa da namorada e amigos que ainda estavam na cidade do Mondego.
O caminho era feito principalmente nos fins de semana, mas nem sempre era necessário ter dinheiro para a viagem.
Em 1962, em Lisboa, na altura da celebração do Dia Nacional do Estudante, Jacinto Rodrigues uniu-se ao colega Eurico Figueiredo e, em protesto pela desmobilização das manifestações que estava a ser feita por parte das autoridades, ocuparam uma cantina da Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa.
Após ser libertado, Jacinto Rodrigues volta a Coimbra. Quando o colega Francisco Delgado, no Jardim da Sereia, incentivou os estudantes a invadirem a AAC, que havia sido encerrada, Jacinto estava lá e foi atrás dos colegas que partiram as portas e ocuparam o edifício “com uma certa ousadia”, refere. Quando a polícia de choque chegou, todos os estudantes foram revistados. Jacinto relembra que a PIDE também lá esteve e “já possuía o nome de algumas pessoas e escolheram 41 dos estudantes, que foram levados em carrinhas para a prisão de Caxias”.
Enquanto estavam na prisão, um estudante mais velho, Carlos Mac-Mahon, conseguiu “colocar nos jovens que estavam um pouco abatidos com a prisão, um entusiasmo e uma auto-organização de grupo”. Baseados no livro de Graciliano Ramos, “Memórias de um Cárcere”, os estudantes dividiram-se em ministérios da cultura, da limpeza, da subsistência, entre outros. Jacinto Rodrigues ficou responsável por organizar treinos de ginástica e ‘yoga’ para os restantes colegas.
Em 1963, foi chamado para a tropa e foi outra vez preso, sob acusação de “exercer atividade contra a segurança do Estado”. Desta vez ficou detido seis meses, porque era um oficial e estava ligado a pessoas que já haviam sido presas. Quando o chamaram de volta para a tropa, Jacinto Rodrigues conseguiu, com ajuda dos colegas das lutas estudantis, fugir do país em 1964 com destino à França, onde ficou exilado por dez anos.
Foi na Sorbonne que, com uma bolsa concedida pela Organização das Nações Unidas, estudou Sociologia. Depois iniciou os estudos até ao Mestrado em Urbanismo e iniciou a carreira de docente. Em Paris viveu ainda o Maio de 1968, e pôde ver de perto que o movimento “teve uma base de apoio social da classe operária que foi muito importante”. Quando retornou do exílio vivenciou de novo em Portugal o mesmo espírito revolucionário que se refletia também nas universidades, nos modos de ser e agir dos alunos em relação ao estudo.
O professor reformado da Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto, que vivenciou toda a história que deu origem ao Dia do Estudante, continua a reconhecer a importância de marcar esta data, mesmo tantos anos depois.
Luís Alcoforado, de Trás-os-Montes aos cinco continentes
Luís Alcoforado saiu da sua aldeia para ir estudar em Coimbra. Sempre afirmou que queria voltar para Trás-os-Montes, mas quando uma boa oportunidade de emprego surgiu no Norte, fez-lhe perceber “que a cidade dos estudantes já era a sua casa” e “já não fazia sentido voltar”. Começou os estudos de Engenharia Eletrotécnica e depois foi para a área que ainda hoje leciona: Ciências da Educação.
Alcoforado comenta que passou por "dois percursos académicos”. O primeiro foi o do envolvimento na AAC. Colaborou com a Secção de Futebol da AAC (SF/AAC), da qual foi logo presidente, e entrou na Secção de Fado da AAC quando foi constituída. Como admite, o estudo foi deixado de lado. E, naquela época, falhar a universidade levava a que fosse chamado para a tropa.
Quando regressou do serviço militar, focou-se um pouco mais nos estudos, mas não deixou de lado a AAC. Em 1988 fez parte da DG da casa, presidida por Ana Paula Barros, e dois anos depois esteve ainda envolvido com a gestão do Estádio Universitário. Além disso, o futebol ocupava uma importante parte da sua rotina: “a SF/AAC é um projeto ao qual me dediquei imenso”, lembra. Com ele na secção, a equipa passou a estar federada.
Sobre estes dois percursos paralelos, o professor confessa ter ainda “dúvidas de qual é que foi mais útil” na sua vida. Na associação, Alcoforado construiu um grupo de amigos “que mantém até hoje”. Além da amizade, considera que o facto de os estudantes poderem ter “um espaço de vida enriquecido com atividades culturais e desportivas” fora dos cursos é uma oportunidade para atingir uma “formação melhor, mais holística e integrada”.
No momento, Luís Alcoforado é professor na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da UC. Embora ache que o encurtamento dos cursos por causa do Processo de Bolonha “cria dificuldades para a participação dos estudantes a longo prazo”, considera que a AAC “mantém a vitalidade que tinha naquele tempo” e aplaude que o trabalho das secções seja hoje ainda “tão meritório” como era naquela altura.
Nas suas aulas conta as experiências que viveu no seu percurso académico em Coimbra. Graças ao seu trabalho nas atividades da casa, o professor conseguiu viajar pelos cinco continentes. Luís Alcoforado assegura que “não teria tido oportunidade nenhuma de ter estas experiências” se não fosse pelo seu envolvimento na AAC.
Luís Alcoforado fez parte da primeira geração que aparece após a obrigatoriedade de ir à guerra, e lembra a vida num ambiente em que eram “desafiados a um grande pensamento e discussão politica”. Em relação ao momento atual, considera que os estudantes continuam a “ter preocupações semelhantes” às que se tinham no seu tempo e convida-os a “continuar a lutar e não deixar que se decida sobre eles sem estarem presentes”.
Alexandre Amado, advogado da luta contra as propinas
A relação de Alexandre Amado com a Academia começou cedo. O facto de ser natural da cidade dos estudantes fez com que a AAC fosse um “símbolo” para ele “desde muito pequeno”, conta. O seu primeiro contacto com o associativismo estudantil, lembra, foi no secundário: “a curiosidade e a vontade de transformar levaram-me a envolver”.
Foi com essa atitude que continuou até chegar à universidade, quando começou a ter uma noção real do que a AAC representava. Não participou em nenhuma secção cultural ou desportiva, mas envolveu-se “logo no primeiro dia” de aulas, quando começou a estudar Direito.
O seu percurso pela Academia começou no núcleo de estudantes da sua faculdade. Iniciou desde logo o seu contacto com a estrutura académica. Foi presidente e vice-presidente do Núcleo de Estudantes de Direito da AAC, representou os seus colegas no Senado da UC e, em 2016, decidiu candidatar-se a presidente da DG/AAC.
Alexandre Amado entrou na presidência da DG/AAC em 2017 e permaneceu em 2018. “O único momento em que me senti plenamente preparado, era quando tinha de ir embora”, lembra com humildade. Para Amado, conhecer o funcionamento da associação “demora tempo” e lamenta que o encurtamento dos cursos, devido ao Processo de Bolonha, “tenha tido um impacto significativo” no associativismo. O ex-dirigente acredita que “a sobrecarga dos estudantes foi péssima para AAC” ao reduzir a possibilidade de as pessoas participarem na vida da casa “de uma forma mais profunda e prolongada”.
Neste sentido, o ex-presidente da DG/AAC considera que se tem sentido um “decréscimo” na participação dos estudantes nas Assembleias Magnas devido às condições criadas nos últimos anos com o Processo de Bolonha. Sobre a representação estudantil no Conselho Geral da UC, Amado considera que existe “desproporção”. “Os estudantes devem ser encarados como agentes do ensino superior”, afirma. E rejeita a ideia de perceber o papel do estudante como “um cliente” a receber um serviço.
Embora a participação e a mobilização dos estudantes tenha reduzido, Alexandre Amado acredita que “há momentos de altos e baixos” e “depende sempre” do contexto. Neste sentido, lembra um dos pontos fortes do seu mandato: a mobilização dos estudantes em 2018, com a qual se conseguiu uma redução de cerca duzentos euros nas propinas.
Sobre a atual geração, Alexandre Amado considera “uma vantagem“ que seja “a mais preparada de sempre” e destaca a “capacidade de mobilização” que ainda conserva. A pensar no futuro, o ex-mandatário da associação fala da “questão do emprego qualificado” e a “falta de dignidade profissional” como “os principais desafios” das novas gerações.
Para Alexandre Amado, comemorar o Dia do Estudante é “valorizar o seu papel como agente cívico, de mudança e de mobilização” e critica a “atitude paternalista” dos políticos neste dia. Assim, pede que os problemas dos estudantes estejam presentes sempre na agenda política e não apenas nesta data.
Repúblicas de Coimbra: para lá do que as paredes nos contam
Espaços lendários na vida académica, as repúblicas de Coimbra surgiram para dar resposta ao problema de escassez habitacional para os estudantes. Enquanto locais já antigos, demarcam a realidade estudantil e a paisagem urbana da cidade. Nestes espaços resiste o espírito crítico e reivindicativo, marcado pela defesa de interesses como a liberdade e a democracia.
Por Raquel Lucas, Luísa Macedo Mendonça e Sofia Ramos
Em Coimbra existem mais de 20 repúblicas, diferenciadas pela sua gestão, organização, espírito social e orientação política. Cada uma tem um nome, muitas vezes marcado pela sátira e ironia. Todos os anos comemoram o seu centenário, pois “um ano numa República equivale a 100 anos na vida real”.
Alguns símbolos marcantes destes espaços são os seus hinos, os decretos e os murais que, sob a forma de frases, desenhos e pinturas, enchem as paredes com histórias, assim eternizadas. A vida boémia e os convívios com debates variados são outros dos aspetos que caracterizam a essência de cada casa.
Durante a década de 1960, estas casas desempenharam um papel muito importante na política nacional, nomeadamente na luta pela democracia e pela liberdade. A crise académica de 1962 foi um dos mais impactantes conflitos estudantis contra o Estado Novo e está na origem da comemoração do "Dia do Estudante" a 24 de março.
Real República do Bota-Abaixo (1949)
O nome da República surge de um desafio ao Estado Novo para, na altura em que a edificação do Pólo I começou a ser idealizada, a casa ser "botada abaixo".
Acompanhado de cartazes com a frase "E o burro sou eu?" de Luiz Felipe Scolari, antigo selecionador nacional, o burro de papel sai à rua em tempos de manifestação. Constitui um insulto contra quem a casa se estiver a manifestar.
O mural representa várias fases do percurso de um estudante coimbrão: o primeiro exame, a primeira vez que é cobrado pelo senhorio e o julgamento de praxe.
"Ká-trá-ká" é o grito oficial da casa. Significa "este é o caminho", em kimbundo, língua muito falada em Angola.
Foi neste quarto que Zeca Afonso, músico de Abril e frequentador da casa, tirou a fotografia para a capa do seu primeiro álbum.
República dos Galifões (1947)
O nome "Galifões" deve-se à antiga configuração da Alta Coimbrã, composta por várias quintas que criavam galinhas. O mito conta que os estudantes as furtavam durante a noite e convidavam os fazendeiros para jantar o animal que outrora fora deles.
Numa altura em que a luta contra a propina se intensificou, antigos estudantes da república trouxeram a mascote da Expo 98, o Gil, para casa. Quando este foi devolvido, trazia consigo a frase "mais vale desaparecer do que pagar propinas".
Um antigo repúblico, conhecido como "Loureiro", foi preso pela PIDE durante a Crise Académica de 62. O estudante enviou aos colegas uma carta em que pedia coisas como livros para estudar e tabaco. A carta foi sujeita à censura, pelo que se pode ver riscado a vermelho alguma informação que era proibida.
Os cães representam aquilo que prejudica o estudante. O rasgar da capa é uma alusão às dificuldades de um universitário.
A fotografia ilustra a geração conhecida como a Comuna dos Galifões. A casa atravessou várias fases, desde uma altura mais radicalizada dos seus membros, durante a década de 70, até uma fase mais conturbada, marcada por um incêndio que destruiu o espaço, em 1985.
Real República Corsários das Ilhas (1954)
Vizinhos dos "galos", os Corsários das Ilhas partilham uma fachada do edifício com os seus "padrinhos".
Apesar de terem uma boa relação, a dinâmica entre ambas as repúblicas centra-se em posições que divergem em relação à Praxe. Esta diferença criou uma rivalidade que durou muitos anos.
A casa foi fundada por estudantes provenientes da Madeira e dos Açores. Penduradas na parede, estão as cartolas dos primeiros Corsários das Ilhas.