
ALICE VIEIRA
O 25 de Abril aconteceu há 50 anos. Para mim, foi ontem; para vocês, que ainda andam a estudar, foi há uma eternidade. Mais ou menos no tempo dos dinossauros. E na maior parte dos casos nem conseguem entender como se vivia, sempre a fugir da polícia, com as prisões muito diferentes das de agora, onde os presos estavam anos e anos, eram torturados e muitos deles acabavam por lá morrer; com os textos todos cortados pela censura; com os nossos telefones sob escuta. Uma vez a polícia levou-me para a esquadra porque eu tinha acabado de fazer uns bolos chamados "russo" – ainda hoje se fazem — e liguei a uma tia só para lhe dizer “os russos já aí vão”.
Mas, num tempo ou noutro, temos de não esquecer nunca que a nossa liberdade não é um dado adquirido porque há sempre alguém que a queira retirar das nossas vidas e por isso temos de ter sempre muito cuidado em defendê-la.
Porque o 25 de Abril é de todos.
Logo em Abril de 1976 foi organizado em todas as escolas um concurso. Os alunos só tinham de responder a uma pergunta: “o que foi, para ti, o 25 de Abril?” Fiz parte do júri. E as respostas eram todas iguais: foi o tempo da nossa liberdade, foi o tempo em que ficámos livres, etc... Até que de repente nos chega às mãos a resposta de um miúdo: uma única frase numa folha meio amarrotada de um caderno. E lemos:
“O 25 de Abril foi o dia em que o meu pai deixou de bater na minha mãe”.
E foi ele que ganhou, claro.
Até hoje não encontrei melhor definição.

AS LUTAS DE HOJE
E AS 'DESCONQUISTAS' DE ABRIL
O amor ao Jornalismo prevalece contra a Precariedade
Perspetiva de quatro jornalistas da região de Coimbra sobre estado atual do setor. Instabilidade da profissão e baixos salários apontados como principais desafios.
- Por Francisca Costa e Inês Reis -
O despedimento coletivo no Global Media Group (GMG) despoletou a luta da classe profissional de jornalistas para a falta de condições laborais. Em consequência, foi organizada a primeira greve do setor em quarenta anos, na qual os profissionais saíram à rua para reivindicar melhores salários e o fim da precariedade. Deste modo, reacendeu-se o debate acerca do modo de funcionamento das redações, tanto de jornais nacionais, como a nível regional e local.
Antes das mais recentes demissões no GMG, realizou-se o Inquérito Nacional às Condições de Vida e de Trabalho dos Jornalistas em Portugal, que teve lugar entre abril e maio de 2022. O estudo foi promovido pela Associação Portuguesa de Imprensa, a Casa da Imprensa, o Sindicato dos Jornalistas e contou também com o apoio da Federação Europeia dos Jornalistas.
A precariedade, além de afetar os profissionais a nível financeiro, tem impactos na sua saúde mental. O relatório revelou que 48% dos inquiridos se sente “inseguro com a sua situação precária” e que 54% está “inquieto” perante este cenário. Atualmente, o salário médio líquido de um jornalista em Portugal é de 1225€, sendo que um terço dos questionados recebe menos de 1000€ por mês. Apesar de ser esta a remuneração média, a carga horária de cerca de 50% dos sondados é superior às 40 horas semanais permitidas por lei.
As consequências da precarização do trabalho jornalístico na saúde mental da classe traduzem-se em 48% dos inquiridos com níveis elevados de esgotamento, o que aumenta o risco de ‘burnout’. O estudo aponta ainda problemas como a autocensura, que já foi vivenciada por 49% dos questionados, o envelhecimento do setor, cuja média de idades é de 45 anos, e o assédio moral, que já afetou 15,1%.
Perante esta conjuntura, parece haver poucas motivações que mantenham os jornalistas empenhados no exercício das suas funções. O Jornal Universitário de Coimbra - A CABRA recolheu o testemunho de quatro profissionais de jornais regionais, de modo a perceber qual a sua perspetiva em relação ao panorama atual e quais as razões que os continuam a atrair ao jornalismo.
“Os profissionais deram demasiado sem pedir muito em troca”
Patrícia Cruz Almeida é jornalista no Diário As Beiras há 22 anos e, apesar de reconhecer as dificuldades do setor, confessa que o “amor à profissão” é o que a motiva a continuar a trabalhar todos os dias. Ao comparar a experiência na delegação do Jornal de Notícias com o trabalho no Diário As Beiras, destaca, no primeiro, “o maior distanciamento das chefias” e, no segundo, “a autocensura e exposição” inerentes ao jornalismo local. No seu ponto de vista, trabalhar num meio de comunicação regional também põe em causa o distanciamento necessário, uma vez que a proximidade com as pessoas é mais evidente.
Para a profissional, um dos fatores que tem contribuído para a “deterioração do jornalismo” é a disseminação da informação “a um ritmo alucinante”, que resulta do espaço que as redes sociais e a inteligência artificial ocupam. Considera que os jornalistas, por muitas vezes não terem um contacto direto com as fontes, “ficam sem tempo para aprofundar as questões e as histórias das pessoas”. A seu ver, “estar mais próximo também é estar mais atento” e, por isso, o jornalismo local deve alertar “para as questões da igualdade, pobreza e discriminação que estão a ser de novo postas em causa”.
A jornalista recorda que “os profissionais deram demasiado sem pedir muito em troca”, o que favoreceu “o declínio do jornalismo”. Na sua opinião, os jornalistas sentem-se sufocados por não terem condições laborais adequadas, algo que contraria a “liberdade, que não deve ser um aperto”. Apesar dos obstáculos, Patrícia Cruz Almeida espera que quem ambicione exercer na área “siga o seu sonho pela democracia e contra a precariedade”.
“O jornalismo como um escudo da liberdade”
João Araújo (nome fictício) refere que continua a “sentir-se bem” no jornalismo, mas não consegue ignorar a forma como a classe é “sobrecarregada”. Na sua perspetiva, esta profissão vive um período de “fascismo camuflado”, no qual “o poder económico manda em tudo”. Considera, de igual modo, que os profissionais devem ser responsáveis pelo que fazem, “sem nunca ter medo, seja do que for”.
Esta profissão vive um período de “fascismo camuflado”, no qual “o poder económico manda em tudo”.
A seu ver, a precariedade “está a condicionar a liberdade no jornalismo”, na medida em que os baixos salários “obrigam” os profissionais a ir para áreas ligadas à assessoria e à publicidade. “Se não houver um vencimento digno, vai haver corrupção”, alerta. João Araújo lamenta também que os jovens jornalistas não sejam “reconhecidos pelo seu esforço e pelo trabalho que têm feito”, algo que não é um problema recente, mas que “agora “é mais notável”.
Apesar de o debate acerca da precariedade estar na ordem do dia, o jornalista revela que, desde que entrou na profissão, se sente desvalorizado. Mesmo ao reconhecer que as ofertas profissionais são cada vez menores, entende que “quem está na profissão há muito tempo também acaba por ser penalizado”. Em relação à imprensa, João Araújo utiliza a expressão “Lápis Azul” como metáfora para as condicionantes que a atividade da escrita enfrenta. Um exemplo disso é a publicidade, que permite manter as portas dos jornais abertas, o que condiciona a liberdade de expressão: “não podemos falar em certos assuntos porque vão mexer com pessoas ou empresas”.
O jornalista reforça que “confrontar o paradigma é difícil, mas os sonhos não são para serem cortados umbilicalmente só porque a precariedade existe”. João Araújo olha para “o jornalismo como um escudo da liberdade”, que deve também proteger os leitores e a população. Neste sentido, pede aos estudantes e futuros profissionais que “continuem, porque amanhã vão ser necessários novos jornalistas”.
“Acho que foi isto que me fez ficar no jornalismo”
Há 17 anos no Diário As Beiras, Bruno Gonçalves sente a profissão e os valores dos jornais ameaçados. “Hoje é cada vez mais difícil para muitas pessoas perceber o que é jornalismo ou qual a sua utilidade”, reitera. Destaca, entre as principais razões para a falta de literacia mediática, o excesso de informação momentânea que os ecrãs permitem e a forma como a informação não é escrutinada pelo público. Acrescenta que “se as pessoas preferem consumir uma informação mais barata de produzir, então não vão precisar dos jornais”. Como solução, acredita que é necessária a credibilização da qualidade jornalística para um futuro estável da profissão.
Na visão de Bruno Gonçalves, a instabilidade financeira que assola os profissionais afeta a qualidade da informação, uma vez que, “numa perspetiva de sobrevivência”, o receio da perda de emprego leva “muitos jornalistas a autocensurar-se”. Por consequência, acredita que se gera uma descredibilização em massa, face a uma crise ética e deontológica da profissão.
O jornalista lembra que, quando começou a trabalhar, as delegações dos jornais nacionais estavam presentes em quase todas as cidades. No entanto, a “forma de trabalhar de hoje é muito diferente”, aponta. Face à centralização dos órgãos de comunicação social na capital, Bruno Gonçalves salienta que a importância dos jornais locais é cada vez maior: “quando as pessoas querem estar informadas sobre o que se passa na sua região, consomem a informação produzida pelas redações locais”.
A versatilidade cada vez mais presente no jornalismo exige, na visão de Bruno Gonçalves, uma maior preparação, tanto por parte de quem atua na área, como de quem a pretende seguir. O jornalista espera que as novas gerações “estejam cientes de que é necessário defender com todas as armas a profissão”. Admite que foi a vontade de trabalhar que sentia quando entrou para o jornalismo que o fez continuar, bem como a perceção dessa vontade por parte de quem o contratou. Bruno Gonçalves conclui com três conselhos direcionados aos jovens: “venham com garra, mostrem serviço e estejam preparados para trabalhar em todas as plataformas, acho que foi isto que me fez ficar no jornalismo”.
“O jornalismo não está a ser respeitado como deveria”
A carreira de Igor Moita começou em 2021, quando terminou a licenciatura e foi estagiar para o Campeão das Províncias. Está como profissional no Diário As Beiras há cerca de um ano e meio e, ao comparar ambas as experiências, refere que “o jornalismo deve ser feito sempre com a mesma determinação e vontade”. Ainda assim, reconhece a existência da precariedade na profissão e alerta para a “crescente necessidade de apoios, que passam por melhorar as condições de trabalho do jornalista”.
A situação atual resulta, no entender de Igor Moita, da “falta de apoios financeiros” que possam valorizar a profissão. “Queremos fazer o nosso trabalho da melhor forma possível e, simplesmente, não temos as condições adequadas para isso”, ressalta. Também aponta que a sobrecarga dos jornalistas, “obrigados a efetuar várias tarefas ao mesmo tempo para assegurar o seu cargo”, e a concorrência diminuem o rigor da informação produzida.
Igor Moita considera ainda que “o jornalismo não está a ser respeitado como deveria” e teme que isso afaste os jovens que ambicionam seguir a profissão. Contudo, mostra-se confiante no “processo de melhoria das condições” e acredita que o futuro “pode ser mais legível”. Neste sentido, aconselha os aspirantes a seguirem o seu sonho, pois “enquanto houver pessoas a lutar por esta causa, o futuro será sempre melhor que o presente”.
Bolsas que não enchem carteiras: a Precariedade crónica da Investigação
Estatuto bolseiro não permite acesso a direitos trabalhistas. Saúde mental é dos principais problemas que abalam comunidade científica.
- Por Bárbara Monteiro, Sofia Ramos e Rodrigo Rossa -
No ano de 2023, a Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), entidade responsável pelo investimento em projetos de produção científica em Portugal, atribuiu 1156 bolsas de investigação para doutoramento, o que corresponde a um decréscimo, atendendo aos dados dos anos anteriores. Esta é uma realidade que se tem vindo a verificar ao longo dos últimos anos, o que, aliada a atrasos nas entregas de bolsas, tem acentuado as condições de precariedade na Ciência. De momento, um total de 7306 pessoas beneficiam de bolsa para efeitos de investigação científica.
A precarização da Ciência
Ricardo Ferraz, vice-presidente da Associação de Bolseiros de Investigação Científica (ABIC), explica que beneficiar de uma bolsa em lugar de um contrato de trabalho desencadeia limitações e suscita problemas do ponto de vista jurídico. Esclarece que, caso os bolseiros estivessem vinculados por um contrato de trabalho, seria-lhes concedido o estatuto legal de trabalhadores, o que lhes permitiria uma progressão na carreira, assim como um acesso aos respetivos direitos consagrados. Entre estes, não é conferido ao bolseiro a garantia a horários fixos, uma remuneração estável, subsídios estaduais, férias ou licenças de maternidade. “O único direito garantido que temos por parte da Segurança Social é o Seguro Social Voluntário e este não engloba quase nada: é uma reforma muito mínima”, declara.
Paula Diogo, professora na Faculdade de Ciências da Universidade Nova de Lisboa e vogal do conselho diretivo da FCT, defende que tal estatuto jurídico-laboral se traduz num fator positivo na vida dos investigadores. A incerteza vivenciada pelos doutorandos acarreta um conjunto amplo de desvantagens que comprometem a qualidade do conteúdo investigado e a própria vida pessoal, explica. A investigadora refere também que é necessário viabilizar o acesso a um subsídio de habitação e a um valor suplementar, a entregar no início dos trabalhos de investigação.
O vice-presidente da ABIC critica a situação contratual dos investigadores, destacando os prazos apertados nos projetos de investigação. “Quando há um limite financeiro e, muitas vezes, limites temporais apertados, obviamente que o projeto vai sair prejudicado: não só vai ser mais pequeno, como vai ser feito por várias pessoas”, esclarece. Nesta linha, Luís Silva, coordenador do Núcleo de Estudantes de Doutoramento da Universidade de Coimbra (NEDUC), alude à incerteza vivenciada pelos investigadores, que desconhecem o rumo a seguir nas suas carreiras após o término da bolsa.
Com assento no Conselho Geral da UC, o representante dos estudantes de doutoramento apela ao fomento da representatividade dos alunos de terceiro ciclo nos órgãos de decisão das várias universidades ao longo do país. Luís Silva sente que a sua obrigatoriedade nestes espaços, tais como o Conselho Pedagógico e o Conselho de Faculdade, é essencial. “É necessária maior representação para ter a certeza de que os alunos de doutoramento são ouvidos”, reitera. Entre outras propostas, o NEDUC defende o alargamento dos requisitos e obrigações para os orientadores de doutoramento, no sentido de capacitar os orientandos para uma gestão mais eficaz do seu tempo e dos demais encargos académicos.
Para colmatar os problemas retratados, Ricardo Ferraz expôs algumas medidas apresentadas pela ABIC, de entre as quais destaca a abolição do Estatuto de Bolseiro de Investigação. A conversão das bolsas em contratos permite “perspetivas a longo prazo e integração na carreira”, informa. A associação propõe também o fim do pagamento de taxas de entrega de tese e a atualização das bolsas, de modo a acompanhar o aumento da inflação e o reforço de investimento no desenvolvimento da Ciência através do Orçamento de Estado. O financiamento e construção de centros de investigação estatais “conduz à contratação de investigadores de uma forma efetiva na carreira”, reforça.
Paula Diogo reconhece que é imperioso haver uma maior alocação de dinheiros públicos no setor da investigação por parte do Estado. A representante da FCT menciona ainda que o montante a investir no âmbito das bolsas de doutoramento “deve aumentar para os níveis europeus”, acreditando tratar-se de um “investimento muito produtivo”. Apesar disso, constata que a previsão de despesa pública para a Ciência tem sido objeto de um incremento no decurso dos últimos anos.
Luís Silva sugere a promoção de medidas tendentes à garantia de uma “maior previsibilidade e melhores condições para este tipo de bolsas”, tanto ao nível do doutoramento, como do pós-doutoramento. O dirigente demonstra ainda preocupação com a queda do Ministério da Ciência e Tecnologia. Apela a que esta decisão não resulte numa desconsideração pelo setor e que se continuem a discutir “estas questões fulcrais em Portugal”.
Ao refletir sobre os últimos 50 anos de regime democrático, o representante da ABIC acredita que, apesar de se terem evidenciado alguns progressos na Ciência, estes poderiam ter sido mais significativos. “Num país tão atrasado como estava Portugal após a Ditadura, conseguir que a Ciência fosse prioridade não era o foco: havia muitas coisas antes”, ilustra. O dirigente partilha que, na década de 1990, se observou “desinteresse” com a afirmação parlamentar dos partidos de direita, que criaram o estatuto de bolseiro e “destruíram” centros de investigação do Estado. “Em muitas das políticas para a Ciência, foi irreversível”, sendo que este fenómeno se prolongou até aos dias de hoje, remata.

(FONTE: EUROSTAT)
(FONTE: EUROSTAT)

(FONTE: FCT)
(FONTE: FCT)

(FONTE: FCT)
(FONTE: FCT)
A problemática da saúde mental
Em 2021 foi publicado o estudo “Trajetórias laborais nas instituições de ensino superior e ciência: excelência e precariedade”. Este reportou níveis elevados de “desgaste profissional” num terço da amostra. A análise indica que 81% dos investigadores se encontram a trabalhar acima de quarenta horas semanais, dos quais cerca de metade estava sob contrato de bolsa, vínculo pontual ou até mesmo sem rendimento associado. Quase todos os inquiridos mencionaram a “incerteza no futuro” e a “falta de estabilidade” como principais fatores de impacto. Ainda assim, a manutenção desta situação foi, acima de tudo, justificada com a “paixão pela Ciência”.
Face à realidade atual, Ricardo Ferraz considera que a pressão vivenciada origina desinteresse por parte dos investigadores, pois “prejudica a vida das pessoas que querem continuar e os projetos acabam por ser menos ambiciosos”. Sublinha que a ansiedade de não se saber o que fazer depois do doutoramento também está presente na vida dos cientistas, sendo que “não está garantido nem o subsídio de desemprego”. O vice-presidente narra um percurso marcado por esforço que termina sem garantias: “é como se nos caísse o chão”. Lamenta, também, a falta de apoio psicológico aos investigadores, uma vez que “mesmo havendo um psicólogo ou outro, acaba por ser pouco para o universo de necessidades que existe”.
Nessa perspetiva, Luís Silva dá a conhecer o défice de respostas e apoio por parte da universidade, a fim de pôr cobro a problemas de saúde mental por parte dos estudantes. “O percurso do doutoramento é nitidamente marcado por ser solitário”, desabafa. Com o objetivo de prevenir situações de desgaste emocional e isolamento, acredita que “é necessário criar redes de apoio aos estudantes de doutoramento”. Considerando este contexto, menciona o trabalho de “gestão do stress, de prioridades e de tempo” levado a cabo pelo NEDUC.
No que diz respeito a este aspeto, Paula Diogo declara que esta entidade não pode fazer muito. Grande parte do trabalho a desenvolver tem de provir do próprio estudante, uma vez que os projetos obrigam a que “ se tenha disciplina de organização e gestão de tempo”, considera. De acordo com a representante, o doutorando deve aprender a lidar com os seus estados emocionais, pelo que incentiva a que haja uma ponderação na escolha da instituição de Ensino Superior e do tema a ser explorado.
A fuga de talentos
Ricardo Ferraz explica que a conjuntura de precariedade contratual motiva um grande número de investigadores a “fugir” para o estrangeiro na busca por condições laborais mais dignas. Nesta medida, elogia os métodos utilizados noutros países, que oferecem melhores investimentos e condições contratuais. “Não só há financiamento para a pessoa, como também para o projeto e tudo aquilo que é possível fazer”, ressalta. Inquirido sobre os destinos mais escolhidos pelos investigadores portugueses, destaca Inglaterra, França, Espanha e Holanda. Não obstante os problemas indicados, Luís Silva exalta a qualidade dos doutoramentos em Portugal, onde inclui a UC.
O dirigente da ABIC expõe que as parcerias estabelecidas com as comunidades estrangeiras não tendem a beneficiar os investigadores, as empresas e as instituições portuguesas. “As pessoas ficam iludidas porque veem financiamento e parcerias lá fora” que, por norma, são temporárias, acrescenta. Refere ainda que estas estratégias de internacionalização servem apenas para “mascarar” o problema, em vez de o resolver, porque a motivação primordial destes agentes é a maximização do lucro e não o interesse público. “Mesmo que a empresa, nessas parcerias, se vincule a contratar a pessoa por mais tempo, a investigação vai ser sempre feita segundo o interesse da empresa que faz o seu papel”, esclarece.
De acordo com os dados da FCT, em 2021, o Orçamento de Estado reduziu por 32 milhões de euros o financiamento para a fundação. Ainda assim, o investimento dedicado a bolsas de doutoramento e projetos é aumentado, reduzindo o dedicado a instituições científicas e contratação de investigadores.
“Este ano foram apresentadas mais de quatro mil candidaturas, entre a linha geral e a linha de teses de doutoramento em ambientes não académicos, e vamos ter cerca de 1550 vagas: há uma diferença substancial entre as candidaturas e as vagas” .



“É sempre uma vida de risco”: a Precariedade dos trabalhadores da Cultura em Coimbra
“O investimento que o Estado português faz na cultura é miserável”, acusa diretora artística d’O Teatrão - OMT. Incerteza face ao futuro profissional inquieta artistas e estudantes.
- Por Catarina Duarte e Liliana Martins -
Falta de financiamento, espaços de trabalho degradados e carga horária excessiva são alguns dos impedimentos que o setor da cultura enfrenta por todo o país. No caso de Coimbra, não existe um autarca exclusivamente responsável pela vereação da área. Perante este cenário, diversos profissionais da cultura partilham os seus testemunhos com o Jornal Universitário de Coimbra - A CABRA e revelam sentir-se desamparados. Ao mesmo tempo, os estudantes das artes também não veem com bons olhos o futuro das suas carreiras.
Os artistas de hoje
Sofia Lobo, atriz e encenadora, deu os primeiros passos na arte do espetáculo em Mortágua, a sua terra natal, ao fazer parte do grupo Teatro Experimental de Mortágua. No entanto, foi em Coimbra que descobriu aquela que considera ter sido a sua “verdadeira escola”: o Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra (TEUC). Ainda na cidade académica, a atriz trabalhou com a companhia A Escola da Noite - Grupo de Teatro de Coimbra desde a sua fundação, em 1992.
Durante os 29 anos em que lá atuou, Sofia Lobo participou em quase cinco dezenas de espetáculos, desde os clássicos aos contemporâneos. Mesmo assim, a encenadora não esconde os desafios que ainda enfrenta na sua profissão. Desde logo, destaca a precariedade do setor e a consequente imprevisibilidade laboral como principais entraves à produção artística. “É sempre uma vida de risco, nunca se sabe o que vai acontecer a seguir”, explica. Perante este cenário de instabilidade, a atriz acredita que os trabalhadores da cultura têm, muitas vezes, “dificuldade em encontrar maneiras de subsistir e de pagar as contas”.
Além das adversidades financeiras, Sofia Lobo menciona a convergência de funções como um desafio da atividade teatral. “Um ator nunca é só ator”, defende. Relata que, a par do seu trabalho enquanto atriz e encenadora na Escola da Noite, chegou a assumir funções de tesouraria e administração da companhia. De acordo com a profissional, essa sobreposição condicionava o seu desempenho: “era difícil tirar a carga burocrática para passar a ser atriz”.
“Um ator nunca é só ator”.
Isabel Craveiro é a diretora artística d’O Teatrão - Oficina Municipal De Teatro (OMT), companhia de teatro profissional conimbricense. A também atriz e encenadora acredita que a cidade vive uma situação cultural “muitíssimo diversificada e dinâmica”. Em parte, atribui esse panorama à oferta formativa do curso de teatro da Escola Superior de Educação de Coimbra (ESEC) e da Licenciatura em Estudos Artísticos da Faculdade de Letras da UC que, na sua visão, “contribuem para uma maior profissionalização do setor”. Ao mesmo tempo, reconhece a falta de consumo de atividades artísticas e de literacia cultural por parte dos mais jovens.
Quanto ao financiamento, a OMT conta com o apoio de entidades como a Direção Geral das Artes, a Rede de Teatros e Cineteatros Portugueses, a Câmara Municipal de Coimbra (CMC) e a Fundação Calouste Gulbenkian. Não obstante, a diretora revela que nem sempre foi assim. “Já fomos muito mal sucedidos do ponto de vista dos concursos para financiamento e isso afetou muito a nossa atividade”, confessa.
Ainda sobre os recursos financeiros para o setor cultural, a dirigente aponta problemas tanto a nível nacional como local: “o investimento que o Estado português faz na cultura é miserável”. Em 2024, a fatia do Orçamento de Estado para a cultura foi de 2,1%, traduzidos em 781,7 milhões de euros, dos quais 272,3 milhões pertencem à Rádio e Televisão de Portugal. Esta percentagem corresponde a um aumento de 0,1% face à quantia do ano anterior. Isabel Craveiro acrescenta ainda que “as políticas de apoio ao associativismo feitas pelo poder regional não estão estruturadas de maneira nenhuma”. Apesar de tudo, mantém uma postura otimista em relação ao futuro da área.
“As políticas de apoio ao associativismo feitas pelo poder regional não estão estruturadas de maneira nenhuma”.

COOPERATIVA BONIFRATES - MATILDE PAZ
COOPERATIVA BONIFRATES - MATILDE PAZ

COOPERATIVA BONIFRATES - MATILDE PAZ
COOPERATIVA BONIFRATES - MATILDE PAZ

O TEATRÃO, OMT - CARLOS GOMES
O TEATRÃO, OMT - CARLOS GOMES

ESCOLA DA NOITE - ANA FILIPA PAZ
ESCOLA DA NOITE - ANA FILIPA PAZ

O TEATRÃO, OMT - CATARINA DUARTE
O TEATRÃO, OMT - CATARINA DUARTE

ESCOLA DA NOITE - SOFIA LOBO
ESCOLA DA NOITE - SOFIA LOBO

O TEATRÃO, OMT - CARLOS GOMES
O TEATRÃO, OMT - CARLOS GOMES
Os artistas de amanhã
As dificuldades apontadas pelos profissionais parecem não se restringir aos trabalhadores em funções, estendendo-se também aos estudantes que ambicionam trabalhar na área. Tiago Henriques frequenta o terceiro ano da Licenciatura em Teatro e Educação na ESEC e, apesar de considerar o curso como “um dos mais completos da área em Portugal”, reconhece os problemas com os quais se pode vir a deparar na profissão.
O finalista perspetiva a cultura como “um dos alicerces da sociedade”, mas descreve o orçamento para o setor como “vergonhoso”. Além disso, acredita que as oportunidades do meio artístico nacional se encontram “centralizadas em Lisboa e no Porto”. Como resultado, sente que se gera uma “grande competitividade” no setor. Em termos práticos, o estudante queixa-se da falta de financiamento para a sua licenciatura. “Os espaços que temos para ensaiar encontram-se degradados e com muito pouco material”, revela. Ainda assim, mostra-se satisfeito com o seu percurso académico, pelo que não se arrepende da sua decisão de estudar teatro.
“Os espaços que temos para ensaiar encontram-se degradados e com muito pouco material”.
A solução para o problema
Para Francisco Paz, diretor da Cultura na CMC entre 2014 e 2022 e ex-dirigente do Teatro Académico de Gil Vicente e do Convento São Francisco, notou-se uma “evolução muito significativa” quanto à criação artística na cultura. No entanto, aponta a falta de comunicação como um dos principais entraves para o público se manter a par da realização de eventos culturais na cidade. “Coimbra consome bastante cultura, mas há muita coisa que acontece que a maioria desconhece, ou a que apenas um nicho de pessoas tem acesso”, explica. Como possível solução para este cenário, aponta que deve ser incentivado, desde cedo, o consumo à cultura, sobretudo entre os jovens.
“Coimbra consome bastante cultura, mas há muita coisa que acontece que a maioria desconhece, ou a que apenas um nicho de pessoas tem acesso”.
O ex-diretor aponta ainda a necessidade de investimento na Associação Académica de Coimbra (AAC) por parte da CMC e apela à consciencialização dos conimbricenses para a importância da instituição na formação dos profissionais do futuro. “É crucial que a população perceba que a AAC tem de ter outras condições e meios para que os estudantes possam continuar o trabalho que têm feito há mais de cem anos”. Para Francisco Paz, a AAC tem dado ao país e ao mundo “grandes intelectuais, seccionistas e homens e mulheres da cultura que aí fizeram a sua escola inicial e intervieram em movimentos sociais pioneiros”.
A AAC tem dado ao país e ao mundo “grandes intelectuais, seccionistas e homens e mulheres da cultura que aí fizeram a sua escola inicial e intervieram em movimentos sociais pioneiros”.
Para auxiliar no combate à precariedade no setor, o ex-dirigente cultural avança algumas estratégias. Desde logo, advoga para a criação de “legislação adequada e de verbas de apoio à cultura”. Para isso, considera “imperativo” que a população e as entidades responsáveis “tomem consciência da importância da área” e chama a atenção para a necessidade de contratar “pessoal especializado” que esteja “inteirado dos assuntos ligados ao setor, de forma a tomar decisões ponderadas e chegar à equidade”.

ALUNOS ESEC - LILIANA MARTINS
ALUNOS ESEC - LILIANA MARTINS

ALUNOS ESEC - LILIANA MARTINS
ALUNOS ESEC - LILIANA MARTINS

ALUNOS ESEC - LILIANA MARTINS
ALUNOS ESEC - LILIANA MARTINS
CARTOON
DUARTE NUNES

Editorial
A Direção.
Ó subalimentados do povo!
Não queremos ser pássaros apedrejados,
sem poder cantar em nossa defesa,
Somos assombrados por uma memória revolucionária
que não vemos ser cumprida.
Uma homenagem sobre as conquistas de Abril vem sempre acompanhada de um revisionismo histórico dissimulado. Não há, nem tem havido, vontade de olhar para o presente quando se fala em Liberdade. Se existiu uma geração a viver na calada, a de agora não cala um grito sem esperança. Com esta edição especial, foi nossa intenção, a partir da valorização de vidas e memórias de quem nos permitiu chegar até aqui, celebrar quem hoje continua a Luta. Abril ficou por cumprir quando deixámos de conseguir perspetivar um futuro, uma casa, família e pão na mesa. Mas não esqueçamos o que era viver antes do 25 de Abril: há 50 anos não sabíamos ler, não havia água canalizada, eletricidade, acesso à educação, cultura livre. Mulheres não tinham espaço. Não havia espaço para a diferença, a mudança e as comunidades marginalizadas. Não queriam que houvesse espaço para a inclusão e o progresso.
Hoje, saudamos os que viveram sem Liberdade. Ao refletir sobre as suas lutas, deixamos uma nota de agradecimento por tudo o que foi construído. Focamo-nos na academia de Coimbra e nos principais rostos da cidade, sem esquecer todas as restantes personalidades e movimentos. Servimo-nos delas para poder trazer para cima da mesa uma discussão atual e necessária. Somos a nova geração à rasca, “a mais bem formada”. Enquanto estudantes, uma das missões do Jornal A CABRA passa por consciencializar a comunidade sobre as nossas novas lutas. Lutas essas que carregam os mesmos chavões há décadas e continuam a pôr em causa aquilo que foi Abril. Ao aprofundar a questão da precariedade, sob três prismas distintos, quisemos sobretudo que saibam: ainda vivemos sem direitos fundamentais. Trabalho. Habitação. Educação. Alimentação. Saúde. Segurança para todos. Igualdade. Liberdade de Expressão. Participação Política. Paz. Qualidade de Vida.
Portugal deve ser um terreno fértil para o diálogo e a ação cívica, onde os valores fundamentais da democracia são postos à prova e renovados, onde a pluralidade de visões deve persistir. A academia de Coimbra deve ser o berço da manifestação de ideias e conhecimento dos estudantes e deixar de se vangloriar por feitos passados, por uma tradição vazia que não respeita a Palavra. Celebrações protocolares não trazem mudança. O desafio reside em honrar o espírito do 25 de Abril e não apenas a sua retórica.
A Direção.