CAC: O clube esquecido pelo tempo

Elementos da Geração de Ouro relembram épocas anteriores e posteriores à expulsão da Secção de Futebol da AAC. Treinador de 1969 considera final da Taça de Portugal como um “abrir de portas” para o 25 de Abril e demonstra incompreensão perante decisão da Assembleia Magna de ‘74.

- Por Pedro Cruz, Fábio Torres e Afonso Vasconcelos -

A expulsão da Secção de Futebol da AAC e a criação do CAC

Meses depois da Revolução, foi decidida em Assembleia Magna (AM) a expulsão da Secção de Futebol da Associação Académica de Coimbra (SF/AAC) da casa mãe. O principal motivo deveu-se ao facto de, ao contrário das outras equipas da Casa, os membros da equipa de futebol serem remunerados. Tal coisa ia contra os objetivos da nova Direção-Geral da AAC (DG/AAC), pois pretendiam que o desporto fosse praticado por amor ao símbolo.

Uma história desconhecida para vários adeptos que entram pelas portas do Estádio Cidade de Coimbra, mas que demonstra o quão conturbado e eufórico foi o pós-25 de Abril. Foi assim que o Clube Académico de Coimbra (CAC) foi fundado, permitindo aos jogadores e treinadores continuarem na mesma cidade. 

Dez anos depois, o presidente da DG/AAC da altura, Ricardo Roque, reuniu e chegou a acordo com o presidente do CAC, Jorge Anjinho. Desse encontro nasceu o principal clube da cidade: Associação Académica de Coimbra - Organismo Autónomo de Futebol (AAC/OAF). 

Nem a equipa principal nem o ‘staff’ técnico esteve presente nessa AM, pois encontravam-se em Espanha, em digressão. Contudo, Mário Campos, jogador da Académica entre 1965 e 1977, assistiu à sessão, pois encontrava-se lesionado e, portanto, não viajou com os seus colegas. O jovem estudante de Medicina conta que a ação “já estava decidida” e que foi apenas uma formalidade “de cinco minutos”.

Caracterizando a decisão como “incompreensível”, o ex-futebolista lamenta que o clube tenha sido expulso da AAC, “depois de tudo o que fez, com os seus colegas, a favor da academia em ‘69”. Mário Campos comenta que, após o ocorrido, a equipa passou a ser “ilegítima” e que, sem os estudantes, “nunca mais poderia ser a mesma”. 

[A equipa] sem os estudantes “nunca mais poderia ser a mesma”.
Mário Campos

Mesmo com o rompimento da Casa com a equipa de futebol, Mário Campos diz que os sócios do clube decidiram mudar o seu nome para Clube Académico de Coimbra (CAC): “andámos nas instâncias da Federação Portuguesa de Futebol (FPF), até que foram dados os direitos desportivos para o CAC”. Assim, o recém-criado clube pôde andar nos principais escalões do futebol português. Enquanto isso, a nova SF/AAC, composta por jogadores amadores, mediou pelo campeonato distrital de Coimbra, situação que ainda se mantém. 

Francisco Andrade, ex-treinador da equipa na Final de ‘69, exalta que o novo clube veio para “substituir a Académica”, pelo que nasceu da “vontade de esta não morrer”. Apesar de, mais tarde, terem tido o emblema de volta, reitera que ainda “faltava muita coisa” no clube para voltar a ser o que a antiga Académica era.

Ainda “faltava muita coisa” no clube para voltar a ser o que a antiga Académica era.
Francisco Andrade

O começo da história

Francisco Andrade veio para Coimbra com o objetivo de terminar os estudos. Foi então que recebeu o convite para treinar a equipa da Académica, começando assim a sua carreira no futebol. Confessa que houve um momento “não muito feliz” na sua jornada, quando se lesionou de forma grave e, enquanto recuperava, foi-lhe dada a frente da equipa júnior da AAC. Contudo, assim que ficou curado, a direção pediu-lhe para treinar a equipa principal.

Neste período decorria a crise estudantil de 1969. O antigo treinador relembra que “Coimbra estava revoltada” e que a censura não permitia que os acontecimentos da cidade “saíssem dos muros”. Também enfatiza que a SF/AAC era composta tanto por alunos em formação como por alunos licenciados e que, por isso, foi levado a cabo um movimento para que se juntassem às manifestações. “O futebol é uma arma terrível para isso, então combinámos fazer algo para demonstrar que a equipa estava com o movimento”, conta. 

O futebol em prol da contestação estudantil

Mário Campos explica que a primeira vez que o clube se manifestou foi contra o Clube Ferroviário Lourenço Marques, numa partida a contar para os oitavos de final da Taça de Portugal. No jogo fora, os estudantes usaram uniformes pretos com braçadeiras brancas, como símbolo do luto académico. 

A Académica venceu a equipa de Moçambique por 4 a 1 no Estádio Cidade de Coimbra e na volta levou a melhor novamente, por 1 a 0, avançando, assim, para os quartos de final. Mário Campos acredita que o facto de as braçadeiras se destacarem do resto do equipamento “dava nas vistas o que se estava a passar”.

Na partida seguinte, os Capas Negras defrontaram o Vitória de Guimarães, considerado por Francisco de Andrade como “uma das melhores equipas da época”, enfatizando o facto de o clube vimaranense ter ficado em terceiro no campeonato nacional. Já no comando da Académica, relata que a AAC não pensava que a equipa fosse avançar mais nas eliminatórias da competição. 

Assim, perderam no jogo de ida por 2 a 1, contudo, em Coimbra, a Académica classificou-se para a próxima ronda após uma vitória de 5 a 0. No jogo em questão, o equipamento, além das braçadeiras brancas, também tinha o emblema tapado com uma fita branca. “Inventámos que alguém tinha morrido para que não se soubesse a real razão”, explica o ex-técnico,  acrescentando que os jogadores combinaram dar as mãos no meio do campo para fazer um minuto de silêncio, o que fez a atitude espalhar-se pelo país.

Na semifinal, o Sporting Clube de Portugal foi o adversário da SF/AAC. Ao vencer os Leões por 2 a 1 no jogo de ida e 1 a 0 no jogo de volta, a Académica alcançou a grande final da Taça de Portugal. Mário Campos enfatiza que, no jogo da segunda mão, que decorreu em Coimbra, o ambiente no estádio era de apoio à equipa, tanto pela AAC, como pelos estudantes, que colocaram faixas em que se podia ler “Menos Polícia” e “Mais Liberdade”. O ex-jogador ressalta que “o movimento entrou forte e bem”, pelo que a equipa estava contente pelo suporte que tinha. 

ARQUIVO DE MÁRIO CAMPOS

ARQUIVO DE MÁRIO CAMPOS

ARQUIVO DE MÁRIO CAMPOS

ARQUIVO DE MÁRIO CAMPOS

ARQUIVO DE MÁRIO CAMPOS

ARQUIVO DE MÁRIO CAMPOS

ARQUIVO SECÇÃO DE JORNALISMO

ARQUIVO SECÇÃO DE JORNALISMO

O futebol como uma arma da liberdade

ARQUIVO DE MÁRIO CAMPOS

ARQUIVO DE MÁRIO CAMPOS

A final da Taça de ‘69

No dia 22 de junho realizou-se a final da Taça de Portugal da época 1968/1969. A Académica estava a um passo de conquistar o título e tinha o Benfica como último obstáculo. “O estádio estava lotado como nunca esteve”, relembra Francisco Andrade. O jogo ficou marcado pelas manifestações de milhares de estudantes que levantaram  dezenas de cartazes. Recorda-se de um deles, onde se podia ler “Melhores condições no ensino”. Sabendo que a partida poderia ser palco de uma manifestação, o Estado Novo tomou várias precauções. Além de não ter tido transmissão televisiva, também foi a primeira vez na história da competição em que nem o Presidente da República, nem o Ministro da Educação, estiveram presentes no estádio.

Na final, os jogadores da Briosa não entraram a correr, como é costume, mas com a capa aos ombros e “a passos”, explica o ex-treinador da SF/AAC. Relembra que o jogo foi “extraordinário”, com a equipa de Coimbra a manter a liderança por 1 a 0 contra os “Benfiquistas”, que tinham vencido o campeonato nacional da época. No entanto, no decorrer da partida, o Benfica fez a cambalhota no marcador, sagrando-se campeão da Taça por 2 a 1.

Mesmo com a derrota, Francisco Andrade refere que a final foi uma “porta aberta para o 25 de Abril”. Realça que, “pela primeira vez, o povo perdeu o medo” e que as pessoas tiveram uma atitude de revolta, o que fez com que o governo “pensasse de maneira diferente” em relação às prisões e punições. Mário Campos relata que o regime militar “já estava podre” e que as manifestações da AAC ajudaram a trazer  visibilidade para o movimento e a “abrir os olhos” das pessoas. 

A criação do Organismo Autónomo de Futebol

Juntamente ao futebol, havia as secções de basquetebol e de natação a representar o recém-nascido CAC. Contudo, conforme conta Mário Campos, o presidente da DG/AAC na época, Ricardo Roque, entendia que era importante que o futebol tivesse visibilidade na AAC. Acordou, então, que o CAC voltasse a usar os símbolos da Casa, agora como um organismo autónomo. “Assim, criou-se a Associação Académica de Coimbra - Organismo Autónomo de Futebol (AAC/OAF)”, conta o antigo jogador.

Contudo, para Mário Campos, foi “um erro” a reintegração do clube na AAC, tendo em conta os moldes em que as coisas aconteceram, e com o panorama atual. “Conheço sócios que, quando veem as duas equipas a jogar uma contra a outra, não sabem quem apoiar, e isso é uma coisa que tem de ser mudada”, confessa. O ex-jogador considera que “a formação de atletas deveria ser feita na Secção de Futebol da AAC através da ligação com a OAF”, e não esconde a sua posição quanto a um acordo entre as duas partes. “Tenho lutado para que haja um entendimento e para que não haja camisolas pretas a jogar contra camisolas brancas”. 

“Conheço sócios que, quando veem as duas equipas a jogar uma contra a outra, não sabem quem apoiar, e isso é uma coisa que tem de ser mudada”.
Mário Campos

Francisco Andrade explica que, após as mudanças, o clube “não tinha a mesma identidade” dos anos ‘60. Ressalta que “não era uma diferença total”, mas que havia traços “mais ligados ao CAC do que à Académica antiga”. No entanto, o ex-treinador acredita que, ainda assim, há uma maior aproximação do clube com a AAC neste momento: “ainda tenho esperanças de que essa conexão venha a dar frutos”.

ESTADO DA ARTE

QUANDO A ARTE ESTAVA SUJEITA AO ESTADO

MÚSICA

A cantiga de protesto como uma arma de libertação do fascismo 

Música de contestação denuncia condições precárias de um “povo oprimido” e muda curso da história. Organismos da academia coimbrã recuperam tradições perdidas.

- Por Camila Luís e Leonor Viegas -

Numa revolução em que a música foi a senha de arranque, torna-se inquestionável o seu contributo para o estabelecimento da liberdade e da democracia, semeadas com o 25 de Abril. Manuel Rocha, músico da Brigada Victor Jara e antigo membro do Grupo de Etnografia e Folclore da Academia de Coimbra (GEFAC), realça a capacidade da canção de transmitir mensagens, “quer boas, quer más”. 

No que diz respeito à música de intervenção, o artista classifica-a como uma ferramenta de “importância decisiva” na consciencialização social pela sua “prontidão” na luta contra o regime fascista. Ao mergulhar nos seus pensamentos, recorda o “Fado do Zé Ninguém”, escrito em 1936, durante o Estado Novo, que veicula as ideias de aceitação da guerra e da morte. Por contraste, reacende também a memória de uma peça de Adriano Correia de Oliveira que canta sobre “um soldadinho” que se apresenta como uma representação da saudade e da vida. 

ANA FILIPA PAZ

ANA FILIPA PAZ

Manuel Rocha enfatiza o poder deste tipo de música para “mudar o curso da história”, espelhado na canção de Zeca Afonso, Grândola Vila Morena, que permitiu que “os soldados abrissem caminho para ir até Lisboa”. Segundo o músico, em Coimbra era “brutal” a familiarização dos cidadãos com a música de protesto, pois vários dos nomes mais conhecidos, como Adriano Correia de Oliveira, Zeca Afonso e António Portugal, tinham passado por lá.

Na cidade dos estudantes “vivia-se a democracia no seio da Associação Académica de Coimbra (AAC) quando ela não era vivida” no resto do país, conta Manuel Rocha. Dentro dos organismos da Casa continuavam a eleger-se dirigentes e a realizar-se assembleias gerais. Apesar do clima repressivo vivido no Estado Novo, Luís Marinho, antigo membro do GEFAC, revela que a música que os universitários ouviam nas suas festas e convívios eram as de contestação. 

Na cidade dos estudantes “vivia-se a democracia no seio da Associação Académica de Coimbra (AAC) quando ela não era vivida” no resto do país.
Manuel Rocha

CENTRO ARTÍSTICO CULTURAL E DESPORTIVO ADRIANO CORREIA DE OLIVEIRA: MEMBROS DO ORFEON EM ESTOCOLMO EM 1962

CENTRO ARTÍSTICO CULTURAL E DESPORTIVO ADRIANO CORREIA DE OLIVEIRA: MEMBROS DO ORFEON EM ESTOCOLMO EM 1962

O GEFAC como um agente de denúncia do “povo oprimido”

Em 1966 surgiu o GEFAC como organismo autónomo ligado à AAC. No entanto, por ser considerado de esquerda, os seus estatutos não foram reconhecidos pela reitoria da Universidade de Coimbra nem pelo Ministério da Educação até à Revolução de Abril, explica o antigo integrante. Devido também ao seu caráter de contestação ao regime, o organismo viveu sem subsídios do Estado durante “muito tempo”, acrescenta. 

Luís Marinho descreve o grupo como um organismo pautado por espetáculos de intervenção alegres, baseados na cultura e na arte popular. “O objetivo era desmontar as danças regionais e o folclore nacional para que não se tornassem uma bandeira do regime salazarista”, expõe. Para Manuel Rocha, os integrantes do GEFAC não eram somente jovens recetores, mas discursores que se reuniam e criavam soluções. Além de dar a conhecer a música popular, o grupo tinha também a intenção “de a colocar dentro de uma trama, uma história”, relembra. 

“O objetivo era desmontar as danças regionais e o folclore nacional para que não se tornassem uma bandeira do regime salazarista”.
Luís Marinho

O antigo, que integrou o grupo em 1968, relata que o coletivo era perseguido e que os agentes da Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE) se infiltravam nas suas atividades. Conta ainda que os espetáculos eram censurados, o que exigia o uso de “uma linguagem simbólica para passar uma mensagem de democracia e autonomia dos estudantes de Coimbra”. Assim, para contornar a censura, Luís Marinho clarifica: “existia muita imaginação e, nessa imaginação, havia arte”, de tal modo que os censores muitas vezes não conseguiam decifrar as letras das suas peças.

“Existia muita imaginação e, nessa imaginação, havia arte”, de tal modo que os censores muitas vezes não conseguiam decifrar as letras das suas peças. 
Luís Marinho

Para as suas atuações serem autorizadas, eram exigidos relatórios das canções que iam ser interpretadas e, no caso das músicas folclóricas, tinham de ser apresentadas as respetivas letras. Imersivo nesta fase da sua vida, o ex-integrante reviveu um episódio em que os membros do GEFAC chegaram a ser detidos e impedidos de voltar a Coimbra após um espetáculo em Castelo Branco, onde entoaram cânticos de contestação.    

João Curto, também ex-membro do GEFAC, refere que muitos elementos dos organismos académicos tinham uma atividade política “ativa”. A seu ver, a música tornou-se muito importante para contestar aquilo que era massificado pelo antigo regime. Assim, no seguimento da Crise Académica de 1969, o coletivo “procurou transmitir através dos seus espetáculos as próprias condições de vida, do ponto de vista do que era o mundo ao nível do interior”. O grupo pretendia provar que a música tradicional tinha valor próprio e dar-lhe voz para denunciar as condições socioeconómicas de um “povo oprimido”. 

O grupo pretendia provar que a música tradicional tinha valor próprio e dar-lhe voz para denunciar as condições socioeconómicas de um “povo oprimido”. 
João Curto

À semelhança do GEFAC, também a Brigada Victor Jara faz uso da canção popular como um meio de  protesto e afirmação “progressista”, pois ambos têm o poder de “colocar a música nos ouvidos das pessoas”. Manuel Rocha realça que a música, para ser sedutora, tem de possuir um “encanto que leve a gostar dela de forma amorosa” e que o grupo é detentor deste magnetismo.

GEFAC - ARQUIVO FRANCISCO PAZ (JOÃO CURTO À DIREITA A TOCAR GAITA DE FOLES)

GEFAC - ARQUIVO FRANCISCO PAZ (JOÃO CURTO À DIREITA A TOCAR GAITA DE FOLES)

Item 1 of 6

GEFAC - ARQUIVO FRANCISCO PAZ (1974)

GEFAC - ARQUIVO FRANCISCO PAZ (1974)

GEFAC - ARQUIVO FRANCISCO PAZ

GEFAC - ARQUIVO FRANCISCO PAZ

GEFAC - ARQUIVO DE FRANCISCO PAZ (GIGANTONES)

GEFAC - ARQUIVO DE FRANCISCO PAZ (GIGANTONES)

GEFAC - ARQUIVO FRANCISCO PAZ (GRAVAÇÕES RTP)

GEFAC - ARQUIVO FRANCISCO PAZ (GRAVAÇÕES RTP)

GEFAC - ARQUIVO FRANCISCO PAZ

GEFAC - ARQUIVO FRANCISCO PAZ

GEFAC - ARQUIVO FRANCISCO PAZ (PAULITEIROS)

GEFAC - ARQUIVO FRANCISCO PAZ (PAULITEIROS)

Um Orfeon diferente num Portugal novo

O Orfeon Académico de Coimbra (OAC), o coro mais antigo do país, era um organismo “muito emblemático da academia” que passou por momentos “muito conturbados” após a Revolução dos Cravos, revela João Pinheiro, ex-orfeonista. O músico, que fez parte do processo de reorganização do grupo, elucidou que esta fase de dificuldade residiu na conotação do coletivo como apoiante do regime fascista.

Além disto, eram também associados ao OAC as festas académicas, a Capa e Batina e a Praxe Académica, elementos que ficaram de fora no pós-25 de Abril, vistos como “um exclusivo da direita”, considerando todos os que quisessem recuperá-los como “fascistas”, explica. Por sua vez, Luís Marinho aponta que o Orfeon Académico de Coimbra não apresentava uma posição muito alinhada com as convicções maioritárias da academia e que, por este motivo, “não era bem percecionado”. Admite ainda que, apesar de os seus músicos serem talentosos, respeitados e integrados no sistema democrático, não eram “agentes ativos da contestação estudantil, da autonomia e da liberdade”.

Após a Revolução dos Cravos, floresceu uma onda reivindicativa por parte das mulheres da academia que pretendiam entrar no OAC, o que não foi bem visto aos olhos de alguns orfeonistas. “As mulheres eram e ainda são parte secundária de muitas histórias, nessa altura ainda mais”, lamenta João Pinheiro. Fruto destas razões, o grupo acabou por se esvaziar de pessoas, sobrando 30 elementos, já que, nessa altura, a academia se encontrava alinhada à esquerda, concretamente ao Partido Comunista Português “que dominava todos os organismos”, aponta.

“As mulheres eram e ainda hoje são parte secundária de muitas histórias, nessa altura ainda mais”.
João Pinheiro

A integração de membros femininos no organismo foi aceite de forma gradual, contudo, sofreu uma certa resistência por parte do público que, em algumas apresentações, ficava desagradado, pois queria “o antigo OAC” de volta. João Pinheiro revela que, no início da sua jornada enquanto membro, os jovens não possuíam uma vestimenta própria para as suas atuações, o que o levou a propor em Assembleia Magna a introdução de um traje para o grupo. Assim, os orfeonistas começaram a atuar vestidos de preto e, à medida que o coro cresceu, foi introduzida a capa negra, o que levantou os seus ânimos.

De modo a colmatar as dificuldades financeiras dos integrantes, a direção adquiriu 30 capas, emprestadas durante os espetáculos e, posteriormente, recolhidas. O ex-orfeonista relembra um episódio que ocorreu na digressão do grupo em Itália.

A música como elemento de propagação dos ideais fascistas

Durante vários anos o fado foi renegado, pois era considerado um valor pró-regime, assim como acontecia com a Capa e a Batina e a Praxe, explica João Pinheiro. As repercussões foram tão graves que, durante um certo período, “não havia fadistas, o Fado de Coimbra estava a morrer”. Este estilo musical só voltou a renascer após o Processo Revolucionário em Curso, de modo gradual, na sua vertente de contestação. Ao longo do tempo, a situação caminhou, “pouco a pouco, para uma normalidade democrática”, referiu o ex-orfeonista.

As repercussões foram tão graves que, durante um certo período, "não havia fadistas, o Fado de Coimbra estava a morrer".
João Pinheiro

Neste sentido, em 1979, através do Movimento de Pró-Organização e Restauração da Praxe Académica de Coimbra, surgiu a ideia de criação da Secção de Fado da AAC. Era seu objetivo reintegrar o fado e a cultura académica na cidade. Por sua vez, com o surgimento da Estudantina Universitária de Coimbra em 1985, este género musical reconheceu “uma grande expansão”, complementa o músico.

Luís Marinho regressou ao início da década de 70 para reavivar o dia em que o GEFAC deu um espetáculo de fado no Teatro Académico de Gil Vicente, que contou com a presença de Adriano Correia de Oliveira, Zeca Afonso e António Bernardino, em pleno luto académico. No período em que se contestava este estilo musical, o antigo membro confessa que “tremia de medo” pela reação da plateia face à atuação. Numa sala cheia, no coração da Praça da República, onde o grupo receava o pior, o inesperado aconteceu e os estudantes “desataram a bater palmas e reconciliaram-se com o Fado de Coimbra”, relata. Perante as autoridades, esta atuação foi o pretexto ideal para marcar todos os presentes como estudantes “revolucionários, perigosos e esquerdistas” até ao 25 de Abril.

Numa sala cheia, no coração da Praça da República, onde o grupo receava o pior, o inesperado aconteceu e os estudantes “desataram a bater palmas e reconciliaram-se com o Fado de Coimbra”.
Luís Marinho

ASSOCIAÇÃO JOSÉ AFONSO - ALBANO ROCHA PATO

ASSOCIAÇÃO JOSÉ AFONSO - ALBANO ROCHA PATO

ANA FILIPA PAZ

ANA FILIPA PAZ

Os artistas de protesto do passado e do presente

Na criação de músicas de contestação, a importância do fado e da balada despertada por Zeca Afonso e Adriano Correia de Oliveira é consensual. O primeiro cantor de protesto em Portugal, Fernando Lopes Graça, começou a compor em 1946. O autor é considerado por Manuel Rocha “um artista fundamental” devido à influência do seu tema “Jornada”, cujo refrão faz soar o apelo “vozes ao alto, unidos como os dedos da mão”. Recorda também Manuel Freire, Francisco Fanhais, Manuel Alegre e Ary dos Santos, alguns dos quais teve a oportunidade de ouvir em criança, no Ateneu de Coimbra. 

O músico da Brigada Victor Jara menciona ainda que a cantiga de protesto da altura da Revolução apresenta uma circunstância que a diferencia da atual: "por ela, podia-se ser preso e até morto". O peso da canção era “muito maior na vida das pessoas”, pois quem subia ao palco para se manifestar através da sua voz, arriscava a sua vida.

A música de protesto da altura da Revolução apresenta uma circunstância que a diferencia da atual: "por ela, podia-se ser preso e até morto”.
Manuel Rocha

Músicos como António Bernardino, António Portugal, António Brojo, Rui Pat, Luís Filipe e Aurélio Reis  são destacados por Luís Marinho como “nomes que estão um pouco esquecidos”. Para o antigo membro do GEFAC, estes artistas e a sua música constituíram um elemento decisivo para a libertação de Portugal. “São figuras a quem estamos eternamente agradecidos”, realça. Já João Pinheiro enfatiza que a música de intervenção “nunca vai acabar” e alerta que o seu fim seria problemático para todos. Recupera ainda a canção de protesto “A Cantiga É Uma Arma”, interpretada pelo Grupo de Ação Cultural (GAC) – Vozes na Luta, e encara-a como um “protótipo do processo revolucionário”.

O ex-orfeonista frisa que existe uma intemporalidade no que toca à capacidade de sensibilização da música, visto que “as canções do passado, quando ouvidas, podem significar consciencialização, assim como as de hoje para as pessoas de antigamente”. De acordo com Manuel Rocha, os artistas de protesto no presente são, sobretudo, ‘rappers’, isto é, músicos de hip-hop que fazem uso da palavra para contestar as más condições dos ambientes onde estão inseridos. Este estilo de música é feito a partir de composições musicais simples que, através de uma combinação de ‘loops’, formam um fundo sonoro sobre o qual dizem as palavras.  “Os nossos tempos misturam coisas e essa combinação é que faz com que o mundo avance”, conclui o músico.

ASSOCIAÇÃO JOSÉ AFONSO - INÁCIO LUDGERO

ASSOCIAÇÃO JOSÉ AFONSO - INÁCIO LUDGERO

CENTRO ARTÍSTICO CULTURAL E DESPORTIVO ADRIANO CORREIA DE OLIVEIRA

CENTRO ARTÍSTICO CULTURAL E DESPORTIVO ADRIANO CORREIA DE OLIVEIRA

ANA FILIPA PAZ

ANA FILIPA PAZ

POEMAS DE ABRIL

Uma peça chamada Liberdade

Do Lápis Azul ao guião livre: o teatro antes e depois do 25 de Abril. João Maria André, Maria Manuel Almeida e Teresa Portugal relembram atividade do TEUC e do CITAC nos anos adjacentes à Revolução dos Cravos.

- Por Matilde Paz -

O ANTES

Teatro de resistência

Se as tábuas do saudoso Teatro Avenida de Coimbra falassem, a história que contariam seria a da resistência. É assim que João Maria André, antigo membro e dramaturgo do Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra (TEUC), se refere ao teatro independente do tempo do Estado Novo. Nesse sentido, o encenador destaca a importância deste grupo e a do Círculo de Iniciação de Teatro da Academia de Coimbra (CITAC) para a cidade no pré-25 de Abril e explica a correlação política dos mesmos.

Era também neste espaço, na Avenida Sá da Bandeira, que acontecia o então famoso Festival do Teatro Universitário, organizado pelo CITAC, organismo autónomo da Associação Académica de Coimbra (AAC). “Trazia não só os principais grupos académicos, mas também o que a arte da representação profissional fazia de melhor no país”, explica Teresa Portugal. Segundo a antiga integrante do grupo, este “proporcionava à cidade um contacto com coisas que ninguém via em lado nenhum”.

Numa altura em que a maioria da população era analfabeta, a cidade dos estudantes destacava-se pela sua politização. A AAC era palco de discussões políticas já antes de ’74, e a Crise Académica de ’69 é assinalada como prova disso. Os estudantes envolvidos no associativismo eram os mesmos que pediam a palavra. “As nossas assembleias magnas eram uma batalha campal”, recorda Maria Manuel Almeida, antiga associada do TEUC.

Para muitos, a participação nestes grupos e a preocupação com o meio cultural foram a origem da sua consciencialização política:“com o tempo foi-se percebendo que, nestes meios, não faltavam pessoas politizadas”, refere Teresa Portugal. Explica ainda que, nessa altura, o difícil acesso à informação sobre o que se passava fora do país traduzia diretamente a natureza opressiva do regime fascista.

“Com o tempo foi-se percebendo que, nestes meios, não faltavam pessoas politizadas”.
Teresa Portugal

Teatro censurado

Tanto no TEUC, como no CITAC, a disseminação de princípios anti-fascistas era uma constante. Estes grupos eram apelidados de “esquerdistas” pela Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE) e considerados “subversivos” e “inconvenientes”, conta Teresa Portugal. Usando a cultura como arma de resistência, os ideais de esquerda propagavam-se entre os estudantes, assumindo tanto uma forma partidária, como, por vezes, uma posição anarquista. Contudo, a ex-citaquiana relembra como a censura era uma sombra contínua na sua atividade, e era preciso ser perspicaz na forma como se fugia ao Lápis Azul, numa escolha de textos que nada tinha de inocente. “Havia espetáculos em que tínhamos de mudar os nomes para passar na censura, pois sabíamos que alguns textos eram proibidos”, rememora.

A academista explica ainda que, enquanto o TEUC se caracterizava por produzir teatro clássico, o CITAC tinha uma abordagem contemporânea e experimentalista. Apesar do sistema de censura, em 1970, sob a encenação de Ricardo Salvat, o CITAC é encerrado indefinidamente, um dos episódios mais marcantes do grupo.

O DEPOIS

A Revolução Cultural

Dados os condicionamentos impostos pelo regime ditatorial, o papel do teatro na Revolução dos Cravos foi limitado. No entanto, em ’74, com a liberdade de expressão já conquistada, surge a estética Agitprop – Agitação e Propaganda. No relato de Maria Manuel Almeida, os grupos universitários embarcaram nesta nova corrente e puderam, finalmente, dizer de modo desafrontado tudo o que tinham sido obrigados a reprimir até então.

Uma das principais novidades foi a facilidade no acesso à informação sobre a cultura que se praticava fora de Portugal, o que também se refletiu no teatro. João André recorda como se começaram a fazer espetáculos políticos, de intervenção na rua e a abordar-se os temas da liberdade, da exploração dos trabalhadores, da crise da habitação e de tudo o que era necessário discutir e mudar.

Além disso, houve uma grande adesão ao método de criação coletiva, em que todos os membros do grupo participavam na discussão de textos, escolha e encenação do espetáculo, como conta Maria Manuel Almeida. De acordo com a ex-membro do TEUC, tanto os atores como a equipa técnica, ou outro elemento, eram convidados a debater abertamente sobre o significado e importância de cada mensagem a transmitir.

Já Teresa Portugal fala sobre a ligação íntima entre a formação cultural e a politização da academia e da população: “nada era inocente do ponto de vista político”. Relembra, a título de exemplo, que Octávio Ribeiro da Cunha, o ex-presidente da Direção-Geral da AAC que foi proibido de frequentar o ensino superior português durante a Ditadura, é ex-membro do CITAC.

A descentralização do teatro

A seguir ao 25 de Abril, iniciou-se um movimento paralelo às campanhas de alfabetização levadas a cabo pelo Movimento das Forças Armadas (MFA), com o objetivo de fazer chegar o teatro a regiões do país onde a população não tinha acesso à arte da representação. “Mário Barradas, um dos grandes obreiros da descentralização teatral, foi crucial para a criação de grupos noutras cidades, fora de Lisboa e do Porto”, recorda João Maria André.

O TEUC teve uma grande participação nesta iniciativa através da realização de digressões por vários pontos do país com a peça “Portugal com P de Povo”, a primeira produzida pelo grupo após a Revolução. Maria Manuel Almeida conta como se vivia o processo de preparação e realização de um espetáculo em espaços que não serviam para o efeito, com falta de recursos, nomeadamente nas cooperativas agrícolas do Alentejo.

“Portugal com P de Povo” possuía uma forte mensagem política e de crítica social ao antes e depois da queda do Estado Novo. Por isso, a ex-membro do TEUC relembra que, em zonas mais conservadoras do país, manipuladas por “caciques” (políticos localmente influentes) e pela Igreja, a receção por parte do público nem sempre foi boa. “Houve pessoas que lutaram e embarcaram nesse novo Portugal, mas também houve muita gente que não o fez, e em Foz de Arouce fomos apedrejados”, recorda.

“Houve pessoas que lutaram e embarcaram nesse novo Portugal, mas também houve muita gente que não o fez”.
Maria Manuel Almeida

ARQUIVO MARIA MANUEL ALMEIDA - TEUC, "PORTUGAL COM P DE POVO"

ARQUIVO MARIA MANUEL ALMEIDA - TEUC, "PORTUGAL COM P DE POVO"

ARQUIVO MARIA MANUEL ALMEIDA - TEUC, "PORTUGAL COM P DE POVO"

ARQUIVO MARIA MANUEL ALMEIDA - TEUC, "PORTUGAL COM P DE POVO"

ARQUIVO MARIA MANUEL ALMEIDA - TEUC

ARQUIVO MARIA MANUEL ALMEIDA - TEUC

ARQUIVO MARIA MANUEL ALMEIDA - TEUC, "PORTUGAL COM P DE POVO"

ARQUIVO MARIA MANUEL ALMEIDA - TEUC, "PORTUGAL COM P DE POVO"

ARQUIVO MARIA MANUEL ALMEIDA - TEUC

ARQUIVO MARIA MANUEL ALMEIDA - TEUC

O teatro e a democracia

Para muita gente, o contacto com o teatro só se iniciou depois do fim da Ditadura. Ainda assim, deixou uma marca forte e permanente nas suas vidas, como foi o caso da antiga integrante do grupo de teatro. “Sempre sacrifiquei muito a minha vida pessoal e familiar, e isso veio do TEUC”, conclui Maria Manuel Almeida.

“Adoro teatro, a minha participação no CITAC foi muito intensa, e houve uma altura em que me tocou de uma forma muito profunda”, revela Teresa Portugal. A ex-associada do organismo autónomo expressa que sempre teve uma participação ativa na oposição ao regime fascista.

A liberdade veio mudar radicalmente a forma como os assuntos podiam ser abordados e o TEUC adotou a prática de debater com o público no final de cada espetáculo. “Acabávamos uma peça e sentávamo-nos à frente do público, dispostos ao «comício»”, explica Maria Manuel Almeida.

Na visão de João Maria André, nem toda a população estava feliz com a conquista da democracia e foi aí que se começou a desenvolver, no seio do teatro, um “papel muito importante: o da mudança de mentalidades”. Por sua vez, Teresa Portugal relembra que “houve vários ritmos, e o 25 de Abril não chegou ao mesmo tempo a todo o país”. Já sem as amarras da censura, a força do teatro enquanto arma de contestação cresceu, transformando-se numa ferramenta de educação social.

2024, 50 anos depois

Para Maria Manuel Almeida, a necessidade de um teatro panfletário foi esmorecendo com a consolidação da democracia e o foco deixou de ser vincar fações políticas no palco. Continua a existir teatro independente, assim como o comercial, e ambos conservam algum espaço para a crítica social, adaptada ao presente.

À data de 25 de Abril de 2024, está um centro comercial onde já morou o Teatro Avenida. O desinvestimento na cultura e o sentimento de preocupação pelo futuro são críticas partilhadas por todos os entrevistados. Quem viveu o regime ditatorial não o esquece nem menospreza o descontentamento que se sente no país. “É muito especial ter vivido a Revolução dos Cravos em Coimbra porque é uma cidade pequena e particularmente politizada”, realça Maria Manuel Almeida. Conclui: “quando se diz que nada mudou, rio-me, porque no quotidiano, e em especial em relação à visão da mulher, a diferença entre o passado e o presente é enorme”.

ARQUIVO MARIA MANUEL ALMEIDA

ARQUIVO MARIA MANUEL ALMEIDA

ARQUIVO MARIA MANUEL ALMEIDA

ARQUIVO MARIA MANUEL ALMEIDA

Lutas Ilustradas

Imagens representadas na exposição "A voz dos Cartoons" do Departamento de Ciências da Vida da Universidade de Coimbra (UC), com a parceria da Reitoria da UC.

- Por Luísa Malva -

Publicado no Jornal "Portugal Socialista" a 24 de junho de 1975

No cartoon figuram protagonistas anteriormente perseguidos pela PIDE, como Álvaro Cunhal do Partido Comunista Português (PCP).

Publicado no Jornal "Diário de Notícias" a 20 de setembro de 1974

Figura do Estado Novo, ex-legionário, nega pertencer a movimentos contra-revolucionários, apoiados pelos Estados Unidos da América. 

Publicado no Jornal "Diário de Lisboa" a 17 de agosto de 1974 

Representação do povo ainda controlado por forças conservadoras antirrevolucionárias: a Aristocracia, a Igreja, a Legião Portuguesa e a PIDE.

Publicado no Jornal "US News & World Report" 

As eleições da Assembleia Constituinte de 25 de abril de 1975 preocupavam os EUA. Os americanos estavam reticentes sobre uma possível aproximação de Portugal com a União Soviética.

Publicado no Jornal "A Capital" a 4 de julho de 1974

O 25 de Abril revoluciona as artes, nomeadamente o teatro.

Publicado no Jornal "Expresso" a 21 de setembro de 1974

O cartoon representa a figura de Spínola, com a bandeira da Legião Portuguesa.

Publicado no Jornal "República" a 27 de abril de 1974

Representa Marcelo Caetano e Américo Tomás no exílio na Madeira.

Publicado no Jornal "Comment & Opinion" a 20 de setembro de 1974 

No cartoon figuram os principais movimentos de libertação das ex-colónias portuguesas.

O conservadorismo no Estado Novo como entrave ao progresso da Ciência

Conservadorismo, subfinanciamento e opressão a investigadores entre principais causas da estagnação da Ciência durante o regime. Investimento científico nas colónias usado em prol da consolidação do império em África, explica investigador da NOVA-FCSH.

- Por Joana Almeida, Guilherme Borges e Ana Cardoso -

Durante a Ditadura, o clima de opressão e instabilidade que se vivia era universal em todas as áreas da sociedade, pelo que a Ciência não era exceção. Este foi um período marcado pelo princípio manifestado por António de Oliveira Salazar, que assentava na ideologia estabelecida: “estamos orgulhosamente sós”.  A expressão foi usada em 1965 num discurso sobre a Guerra Colonial e a situação geopolítica do país, mas também pode ser aplicada ao contexto do progresso científico no Estado Novo.

Por todo o mundo assistia-se a uma grande evolução científica, em que países competiam pelo desenvolvimento e conquista de novas tecnologias, explica Carlos Fiolhais, físico e  antigo professor da Universidade de Coimbra (UC). Por outro lado, Portugal não acompanhou este avanço e abraçou um conservadorismo que pretendia manter uma economia "ligada à terra”, destaca.

O cientista explica que não foi uma época “amiga da Ciência nem dos cientistas” no país. “O mundo sabia que a Ciência era poderosa, mas o Estado português não percebeu isso, estava isolado devido à Guerra Colonial”, esclarece. Carlos Fiolhais refere ainda que, apesar de se ensinar e praticar Ciência, o investimento sempre foi insuficiente quando comparado com as demais nações da Europa. As entidades responsáveis pela política científica - a Junta de Educação Nacional, que depois passa a Instituto para a Alta Cultura - atribuíam um “apoio muito tímido” ao desenvolvimento científico, o que causou um “subfinanciamento crónico” no setor, reflete Tiago Brandão, investigador integrado da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade NOVA de Lisboa (NOVA FCSH). Carlos Fiolhais acrescenta que, em 1964, a estimativa de investimento na Ciência e tecnologia abrangeu apenas 0,1% do PIB português.

Por outro lado, começaram a surgir os primeiros apoios de privados, em especial vindos do estrangeiro, como aconteceu com a Fundação Calouste Gulbenkian, em 1956, refere o investigador da NOVA FCSH. “Este instituto foi como um oásis onde foi possível proteger algumas individualidades que não comungavam da ideologia do regime”, expõe. As contribuições dos privados, promovidas por meio de bolsas, permitiram combater o baixo financiamento do Governo, levando à criação de “ilhas de progresso e de abertura”, conclui.

A maior parte do avanço científico que existiu durante este período nasceu com a finalidade de ser aplicado nas colónias, em particular através de investigações para melhor rentabilizar os seus recursos naturais, como explica Carlos Fiolhais. Segundo Tiago Brandão, a ocupação efetiva dos territórios em África “sempre foi muito difícil”. Assim, na década de 1930 surge “uma retórica da ocupação científica do Ultramar", utilizando a “Ciência como parte do projeto político de controlo das colónias”, explicita. Destaca ainda a geologia, por exemplo, que foi usada para “conhecer os recursos naturais e desenvolver a indústria extrativista”.

Contudo, quando foi descoberto petróleo em Angola, Salazar teria ficado “assustado”, considera Carlos Fiolhais. Este acontecimento era sinónimo de progresso e transformações sociais, o oposto dos ideais defendidos pelo regime, elucida o físico. O Estado Novo encarava a modernização como “perigosa”, pois a industrialização “levaria ao aparecimento dos operários, o que resultaria em movimentos sindicais, que culminariam no comunismo, o grande inimigo do regime”, argumenta o antigo professor da UC. 

Com o objetivo de aumentar a sua popularidade, a Ditadura usou como propaganda a revista mensal “Portugal Colonial". Isabel Duarte, docente na Universidade do Porto, foi uma das autoras do artigo “Discurso científico e ideologia na revista do Estado Novo, Portugal Colonial”. Na publicação dissertou sobre o uso da Ciência para fins propagandísticos, especialmente no contexto colonial do regime salazarista. De acordo com a autora, um dos objetivos dos textos era “pôr o conhecimento especializado ao serviço do império colonial”. 

A revista continha artigos sobre agricultura, economia, comércio e indústria, assim como textos “claramente ideológicos”, ressalta a professora. A “Portugal Colonial” era a favor da Ditadura e “muito elogiosa”, utilizando a Ciência “ao serviço da construção da ideologia do Estado Novo e para legitimar o regime”, refere. Isabel Duarte assevera o contraste com a atualidade: “ao contrário do que acontece hoje na Ciência, a revista era expressa com superlativos e muita adjetivação”. Assim, existia uma “presença ostensiva por parte dos seus autores, que se aproximava mais de um discurso de manifesto do que científico”, adiciona.

Carlos Fiolhais aponta que as várias áreas científicas eram tratadas de formas diferentes nesta época. De acordo com o antigo docente, o regime usava a Ciência aplicada para fazer propaganda. “O Estado Novo, mais do que recorrer à Ciência como propaganda, usava obras e infraestrutura, como é o exemplo de alguns edifícios da UC, que imitam os da Itália fascista”, explica. A Ponte 25 de Abril chamava-se “Ponte Salazar” em homenagem ao ditador que a inaugurou, exemplifica.

Durante esta época, vários investigadores e professores foram alvo de perseguição pelo regime, outro obstáculo que impediu o desenvolvimento científico e tecnológico. Em 1947 foi redigido um decreto no qual o presidente do Conselho de Ministros ordenou a demissão de 21 professores da Universidade de Lisboa. Marieta da Silveira, assistente do professor Aurélio Marques da Silva, afastado da cátedra da Faculdade de Ciências de Lisboa, garante que os professores demitidos  não tinham qualquer atividade política. “No Laboratório de Física só se falava de política esporadicamente, na hora do lanche, e só para comentar alguma notícia que saía nos jornais”, explica em entrevista ao Expresso.

Carlos Fiolhais destaca que “muitas destas pessoas tiveram de se exilar, tendo só regressado a Portugal após o 25 de Abril”. A título de exemplo, apresentou o caso de Mário Silva, cientista português que, após ter sido depurado, para se conseguir sustentar, teve de vender equipamentos da Philips. Ainda assim, explica que as perseguições que existiram neste período “não eram científicas, mas políticas”.

Por sua vez, Tiago Brandão aponta que os cientistas foram oprimidos devido à sua “liberdade intelectual e liberdade de expressão”, que constituíam uma ameaça aos princípios ideológicos do regime salazarista. Por este motivo, de acordo com o investigador, Salazar censurou a introdução da Sociologia na Academia Portuguesa, o que “revela como as Ciências humanas e sociais apresentavam um perigo para o regime”.

“A Ciência precisa tanto de liberdade como um cidadão necessita de pão para a boca: é preciso poder pensar e escrever livremente, passar fronteiras com papéis e com instrumentos”, argumenta Carlos Fiolhais. Desta forma, o físico assevera que a “área científica não tinha um cenário ideal para florescer no país”. Conclui ao sublinhar que  o insuficiente desenvolvimento científico não se devia apenas à falta de vontade política, mas também à carência de escolarização da população e, em particular, à baixa adesão ao Ensino Superior.

AS AMARRAS DE UMA ACADEMIA SEDENTA POR LIBERDADE

ARQUIVO SECÇÃO DE JORNALISMO

ARQUIVO SECÇÃO DE JORNALISMO

Nas sombras e dentro de portas, a luta adaptou-se, mas nunca desvaneceu

O encerramento da AAC, em 1971, marcou um período de dispersão do Movimento Estudantil, mas de atividade clandestina intensa. Desde reuniões em repúblicas, panfletos em circulação e vozes de protesto, estudantes da altura partilham as suas memórias.

- Por Joana Carvalho, Solange Francisco e Matilde Mendes -

A luta estudantil que marcou o pré-25 de Abril de 1974 é, muitas vezes, reduzida a dois momentos: a Crise Académica de 1962 e a Crise Académica de 1969. Num artigo de Miguel Cardina, intitulado “Movimentos Estudantis na Crise do Estado Novo”, são apontados vários motivos que justificam “estas lembranças seletivas”, nomeadamente a efemeridade da experiência de um estudante de Coimbra. Esta “peculiaridade da condição estudantil (...) faz com que a transmissão da memória tenha de lidar regularmente com interrupções e curto-circuitos”.

 No entanto, nem só de pedidos de palavra se fez o 25 de Abril. Nesse sentido, o Jornal Universitário de Coimbra - A CABRA foi à procura de testemunhos dos momentos que precederam a Revolução dos Cravos. Desde a movimentação clandestina nas repúblicas de Coimbra às demonstrações públicas contra a Guerra Colonial, foram várias as vivências de quem recorda a cidade e a Universidade de outros tempos.

O encerramento da AAC e a dispersão do Movimento Estudantil

A 17 de abril de 1969, Alberto Martins pediu a palavra na inauguração do Departamento de Matemática da Universidade de Coimbra (UC) e esta não lhe foi concedida. Isto deu início a uma crise académica com uma greve estudantil em massa e o boicote aos exames pela maior parte da comunidade universitária. “Os estudantes deixaram de usar Capa e Batina” pelo luto académico e “depois de 1969 deixou de se fazer a Queima das Fitas”, recorda João Teixeira, antigo estudante de Direito, que viveu os seus anos universitários na Real República do Bota-Abaixo.

Seguiram-se tempos conturbados. Em 1971, a Polícia Internacional e de Defesa do Estado, conhecida também como PIDE-DGS, após a alteração do nome para Direção Geral de Segurança, e a Polícia de Segurança Pública (PSP) assaltaram a Associação Académica de Coimbra (AAC). Desta ação resultou o fecho do edifício-sede entre 1971 e o 25 de Abril de 1974. 

Rui Bebiano, antigo professor da Faculdade de Letras da UC, refere que, com o encerramento da AAC, o Movimento Estudantil sofreu algumas mutações. Na perspetiva do também escritor e investigador houve, em primeiro lugar, “um certo recuo na atividade associativa”. Refere que, ao desaparecer a direção da AAC, “o que acontecia concentrado num local começou a acontecer em vários sítios da cidade”. É neste momento que também se dá uma “radicalização política muito grande do movimento, quer do ponto de vista cultural, quer político”.

No entanto, o encerramento da AAC enquanto eixo político não significou o fim das atividades culturais e desportivas. Estas mantiveram-se, apesar de se encontrarem debaixo de olho por parte das autoridades. “Todo o edifício funcionava em termos de organismos autónomos”, refere João Teixeira. São alguns exemplos o Grupo de Etnografia e Folclore da Academia de Coimbra e o Coro Misto da UC, assim como o Teatro dos Estudantes da UC e o Círculo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra.

A CEPRAAC e o Movimento Estudantil na clandestinidade

O encerramento da AAC não foi aceite de ânimo leve pelos estudantes de Coimbra. Foram várias as iniciativas que se desenvolveram no sentido de combater o desaparecimento da atividade política. Graças a uma maior movimentação dentro das repúblicas e na União dos Estudantes Comunistas, nasceu a Comissão Pró-Reabertura da Associação Académica de Coimbra (CEPRAAC).

As reuniões deste órgão decorriam nas repúblicas e chegavam aos estudantes através de comunicados. Estes eram impressos nas casas comunitárias com uma “impressora clandestina que era escondida das autoridades na casa de banho”, recorda José Almeida, antigo estudante de Medicina na UC e residente na Real República Palácio da Loucura. João Curto, também antigo estudante de Medicina na UC, acrescenta: “nós aproveitávamos quando íamos para as aulas e distribuíamos os comunicados pelas Escadas Monumentais no meio da multidão ou levávamo-los para as faculdades”.

Outro espaço onde os estudantes se encontravam era o café Clepsidra, situado na Rua Castro Matoso, onde agora existe o restaurante O Pancinhas. O espaço funcionava como uma cooperativa gerida pelos estudantes e “era onde se cantava, declamava e discutia académica e politicamente”, declara João Curto, também ex-morador da Real República Palácio da Loucura.

José Almeida relembra como este café “era um espaço memorável, onde Zeca Afonso subia para cima de uma mesa com a viola e começava a cantar”. Ambos deixam claro que a Clepsidra albergou as lutas estudantis, mas também outras demandas de toda a população que não estava de acordo com o regime.

Já as cantinas tinham mais movimento quando a CEPRAAC decidia fazer uma ação mais interventiva, visto que era o local de reunião de todos os estudantes durante o almoço. “A uma hora certa, um dos elementos do movimento saltava para cima da mesa e começava a falar sobre a luta e a nossa função era fazer uma muralha de estudantes para os infiltrados da PIDE-DGS não desmobilizarem esse ajuntamento”, destaca José Almeida. Nas datas significativas da academia, a população estudantil também se reunia nas cantinas com noção de que à porta de saída encontrariam “um cordão de polícia”, menciona o ex-estudante de Medicina.

O papel das Repúblicas no Movimento Estudantil clandestino

Foi a partir dos anos 60 que a influência das repúblicas se começou a fazer sentir, no momento em que uma lista organizada pelo Conselho de Repúblicas (CR) ganhou as eleições para os órgãos centrais da AAC. As casas comunitárias revelaram ter um papel crucial na atividade clandestina, já que permitiram continuar a intervir politicamente durante o período em que a AAC esteve fechada. Este dispersar do Movimento Estudantil levou à adoção de novas estratégias.

Aristides Augusto Freixinho, antigo estudante de Direito e ex-residente na Real República do Bota-Abaixo, conta, entre risos, os tempos em que se envolveu na resistência contra o regime. Menciona que as ações dos repúblicos que se opunham ao Estado Novo passavam, sobretudo, pela “contestação, o boicote às aulas, fazer os panfletos e espalhar a papelada toda que era imprimida”.

José Almeida aponta as repúblicas como o espaço de excelência para que os estudantes pudessem “delinear algumas formas de luta e de chegar ao maior número de pessoas”. A máquina impressora que se encontrava na Real República Palácio da Loucura, por fazer muito barulho, “não estava sempre no mesmo sítio”. Lembra também os momentos em que as casas comunitárias davam guarida a pessoas que se encontravam escondidas da PIDE-DGS. “Não ficavam mais de um ou dois dias e depois arrancavam para outros locais, ninguém perguntava quem era”, expõe.

A participação das mulheres no Movimento Estudantil

ANA FILIPA PAZ

ANA FILIPA PAZ

Numa altura em que a conduta social portuguesa se pautava por linhas bastante conservadoras, a participação das mulheres na resistência contra o regime era, segundo os testemunhos, um tanto complicada. Esmeralda Cardoso, estudante na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto até 1967, concluiu o seu percurso académico em Coimbra pouco antes da crise de ‘69. Apesar de já não estudar na altura em que a AAC fechou, manteve-se ativa depois de terminar o curso. 

A antiga estudante conta que a adaptação à vida em Coimbra foi difícil por ser um meio “extremamente pequeno”, comparado com o Porto. “As meninas não podiam ir ao cinema sozinhas nem andar à noite no café, porque eram mal vistas”, recorda. Esmeralda Cardoso refere que, no momento em que veio para a cidade, ligou-se “sem querer” aos dirigentes que iriam protagonizar a Crise Académica de 1969. 

Da sua experiência pessoal, a antiga academista defende que sempre se sentiu bem recebida, tendo ficado ligada à República Ay-Ó-Linda. No entanto, reconhece a dificuldade que era para as mulheres estudantes participarem no movimento “devido ao escrutínio” a que estavam sujeitas.

Antes dos anos 70, a segregação de ambos os géneros era imposta através de vários mecanismos. No seu artigo, Miguel Cardina expõe que a imagem que se tinha das repúblicas como espaços predominantemente masculinos e os lares religiosos como femininos servia como uma forma de “secundarização” das mulheres, assim como a vedação do uso da Capa e Batina, até aos anos 50.

Esmeralda Cardoso relembra que, quando havia eleições, era prática comum as freiras que geriam estes lares mobilizarem as raparigas para as urnas para votarem nas listas que eram nomeadas pelo governo do Estado Novo. Conta ainda que uma das estratégias que permitiu a viragem para a lista apoiada pelo CR foi o contacto entre os rapazes das repúblicas e as raparigas, que começaram a namorar.

Rui Bebiano explica que, com o virar da década, a mudança cultural e política trouxe um ambiente “mais leve e alegre”, sobretudo para as mulheres. Esmeralda Cardoso reforça esta ideia ao contar que, nos anos que antecederam o encerramento da AAC, as assembleias magnas nos jardins contavam com uma forte participação feminina.

"Nos anos antecedentes ao encerramento da AAC, as assembleias magnas que tinham lugar nos jardins contavam com uma forte participação feminina".
Esmeralda Cardoso

ALEXANDRA GUIMARÃES

ALEXANDRA GUIMARÃES

ARQUIVO REVISTA "InFoRmAção" - FOTO DE MANUEL CORREIA: "JÚLIO JORDÃO À PORTA DA COOPERATIVA CLEPSÍDRA"

ARQUIVO REVISTA "InFoRmAção" - FOTO DE MANUEL CORREIA: "JÚLIO JORDÃO À PORTA DA COOPERATIVA CLEPSÍDRA"

ARQUIVO SECÇÃO DE JORNALISMO - REAL REPÚBLICA DO BOTA-ABAIXO

ARQUIVO SECÇÃO DE JORNALISMO - REAL REPÚBLICA DO BOTA-ABAIXO

ARQUIVO SECÇÃO DE JORNALISMO

ARQUIVO SECÇÃO DE JORNALISMO

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ARQUIVO REPÚBLICA DO BOTA-ABAIXO

ARQUIVO REPÚBLICA DO BOTA-ABAIXO

ARQUIVO REPÚBLICA DO BOTA-ABAIXO

ARQUIVO REPÚBLICA DO BOTA-ABAIXO

ARQUIVO REPÚBLICA DO BOTA-ABAIXO

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A PIDE-DGS, a PSP e a repressão ao Movimento Estudantil

Rui Bebiano explica que, durante os últimos anos do marcelismo, a repressão policial aumentou de forma exponencial. “Houve muito mais prisões durante os quatro anos finais, depois da crise de ‘69”, o que também causou um aumento das práticas de tortura, desde espancamentos à conhecida “tortura do sono”, revela.

O investigador relembra a história do estudante Fernando Seiça, que foi baleado em 1972, em confrontações com a polícia.

O próprio, enquanto participante ativo na resistência, conta que estava certo de que iria ser preso eventualmente.

Para João Curto, uma forma que os estudantes tinham para se protegerem tanto da PIDE-DGS como da PSP, era “evitar serem apanhados sozinhos”. Salienta que as atividades clandestinas de resistência ao regime eram feitas, na sua maioria, de noite, para passarem mais despercebidas.

Esmeralda Cardoso partilha que “era preciso ter muito cuidado com o que se fazia” e que havia muita incerteza sobre o dia seguinte. No seu caso, teve a PIDE-DGS à porta de casa durante meses. “Eram dois carros, um para mim e um para o meu ex-marido”, conta a antiga estudante: “onde eu ia, a PIDE ia atrás”. Assim, não tinha telefone “para não estar sob escuta”, optando sempre pela utilização de uma cabine telefónica ou da estação de correios.

Já Aristides Augusto Freixinho considera que a PSP de Coimbra tinha um “certo entendimento, tanto que pediam reforços à polícia de fora” nos momentos mais tensos. Nesse sentido, o antigo estudante de Direito na UC atribui uma responsabilidade acrescida à PIDE-DGS na repressão do Movimento Estudantil.

José Teixeira admite que “a PIDE, por vezes, estava vestida à civil”, mas, pelo contrário, quem era pior era a PSP de Coimbra. A seu ver, a polícia estava alertada para a distribuição dos comunicados. Desta forma, “havia o patrulhamento e quando os víamos perto a gente fugia, para não ser apanhado”.  Havia sempre “atrito” entre os estudantes e a polícia. 

Os universitários gozavam de um estatuto que os protegia de serem chamados para o serviço militar obrigatório. No entanto, caso fossem presos pela PIDE-DGS, pela PSP, ou fizessem greves aos exames, muitas vezes a consequência era o seu envio para a guerra nas colónias.

O luto académico e a abolição da Praxe

Com o início da Crise Académica de 1969, foi também decretado o luto académico, que marcou o fim de todas as tradições académicas, desde o exercício da Praxe, ao uso da Capa e Batina e à Queima das Fitas. Rui Bebiano refere que, na altura, o fenómeno “já se tinha transformado”. No entanto, explica que “as praxes eram vistas como um instrumento das hierarquias”, o que, para a maioria dos estudantes, “era um contrassenso”. 

As repúblicas eram grandes bastiões da Praxe de Coimbra, sendo que uma casa, para ser reconhecida como tal, precisava do aval do próprio Conselho de Veteranos. No entanto, no seguimento do espírito que se vivia, o CR declarou que, em virtude do luto académico e da cessação das tradições, as repúblicas de Coimbra passariam a ser anti-praxe.

Para João Teixeira, a abolição da Praxe “era muito importante, na medida em que o estudante deixou de ser a pessoa bem comportada que o regime acarinhava”. Na perspetiva de Aristides Augusto Freixinho, “havia coisas na Praxe que não tinham cabimento”, como a prática do rapanço e da sanção de unhas.

A Praxe voltou a ser instituída devido à ação do Movimento Pró-Reorganização e Restauração da Praxe no início dos anos 80. No entanto, existe um grande debate sobre se o luto académico foi levantado. Para Rui Bebiano, esta não é uma realidade, pois “ninguém queria que a Praxe fosse restituída”, sendo privilegiadas outras formas de integração.

O Dia em que o País parou: o 25 de Abril em Coimbra

Na noite em que o Movimento das Forças Armadas (MFA) tomou o Quartel do Carmo, as notícias não chegaram a Coimbra de imediato. Esmeralda Cardoso relembra que só a 27 de abril é que a cidade recebeu os militares responsáveis pela queda do regime. “Estivemos dois dias com a PIDE ali em cima com metralhadoras apontadas para a Praça da República”, explica. No entanto, no momento de tomar a sede do partido União Nacional, realça que a resistência foi inexistente, face à multidão que se concentrou à frente do edifício, que se localizava no Pátio da Inquisição.

João Teixeira conta que se encontrava na Real República do Bota-Abaixo, a dormir, no momento em que se deu o 25 de Abril. Por fazer parte da União de Estudantes Comunistas, o antigo aluno sabia que algo estaria para acontecer. “As indicações que tínhamos eram para guardar livros e comunicados em sítios que não pudessem ser identificados, porque não se sabia o que iria acontecer”.

Já Aristides Augusto Freixinho relata que, no momento em que o regime foi derrubado, o entusiasmo tomou conta das pessoas. “Foi uma alegria muito grande”, reforça.

O ambiente na Real República Palácio da Loucura não era diferente. José Almeida conta que, na noite de 24 para 25 de Abril, os seus residentes tinham ficado acordados até tarde, pois tinham estado a “imprimir comunicados”.

Segundo o antigo estudante, começou a aparecer mais gente na república, o que os levou à rua. “Ocupámos os jardins em primeiro lugar, porque era o que estava proibido. Começámos a fazer cerco na sede da PIDE para não fugirem”, releva.

“Foi uma surpresa, ainda hoje choro”, diz João Curto. Atesta que não houve informação muito direta, no momento em que aconteceu. Quando chegou à faculdade, reparou que os colegas se encontravam a ouvir a rádio a relatar a tomada de poder do MFA. Havia a ameaça de um golpe de extrema-direita, pelo que a receção das notícias não veio sem alguma ansiedade.

Para o antigo repúblico, no dia do 25 de Abril, houve “um alívio enorme e um sentimento de esperança”, que foi o culminar de uma luta “pela democratização do ensino e pelo fim da Guerra Colonial”. Já para Esmeralda Cardoso, a Revolução trouxe grandes conquistas, como o Serviço Nacional de Saúde e o acesso ao ensino de forma mais universalizada. No entanto, a antiga estudante enfatiza que se deve apostar na nova geração “para tentar mudar o estado das coisas”.

Na visão de Aristides Augusto Freixinho, antes do 25 de Abril, “os melhores braços partiram”, devido ao dinheiro que foi gasto na Guerra Colonial. Recorda ainda que “havia crianças que iam para a escola e não tinham pão, não tinham água, não tinham luz”. João Teixeira, por sua vez, considera que, no Estado Novo, “havia tristeza e o florescer do 25 de Abril veio dar muito alento aos estudantes e a todo o país”. 

A MEMÓRIA QUE SE OUVE

- Por Bruna Fontaine e Diogo Teles Mateus -

IMAGENS DO CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO 25 DE ABRIL - UNIVERSIDADE DE COIMBRA

CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO 25 DE ABRIL - UNIVERSIDADE DE COIMBRA

CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO 25 DE ABRIL - UNIVERSIDADE DE COIMBRA

CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO 25 DE ABRIL - UNIVERSIDADE DE COIMBRA

CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO 25 DE ABRIL - UNIVERSIDADE DE COIMBRA

CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO 25 DE ABRIL - UNIVERSIDADE DE COIMBRA

DIOGO MATEUS

DIOGO MATEUS

CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO 25 DE ABRIL - UNIVERSIDADE DE COIMBRA

CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO 25 DE ABRIL - UNIVERSIDADE DE COIMBRA

CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO 25 DE ABRIL - UNIVERSIDADE DE COIMBRA

CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO 25 DE ABRIL - UNIVERSIDADE DE COIMBRA

CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO 25 DE ABRIL - UNIVERSIDADE DE COIMBRA

CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO 25 DE ABRIL - UNIVERSIDADE DE COIMBRA

PÁGINA DE FACEBOOK "HUMBERTO DELGADO, O GENERAL SEM MEDO" - FOTOGRAFIA DE ALBANO DA ROCHA PATO, CORRESPONDENTE DO JORNAL DE NOTÍCIAS

PÁGINA DE FACEBOOK "HUMBERTO DELGADO, O GENERAL SEM MEDO" - FOTOGRAFIA DE ALBANO DA ROCHA PATO, CORRESPONDENTE DO JORNAL DE NOTÍCIAS

CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO 25 DE ABRIL - UNIVERSIDADE DE COIMBRA

CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO 25 DE ABRIL - UNIVERSIDADE DE COIMBRA

CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO 25 DE ABRIL - UNIVERSIDADE DE COIMBRA

CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO 25 DE ABRIL - UNIVERSIDADE DE COIMBRA

CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO 25 DE ABRIL - UNIVERSIDADE DE COIMBRA

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Perseguição a estudantes com jipes

A Crise Estudantil de 1969 preenchia as ruas de Coimbra de vigilância militar. Os soldados vigiavam a cidade que se moldava entre atos de rebeldia e de manifestação. Destacam-se os carros militares da época pela armadura de arame farpado que não hesitava em perseguir os estudantes que se reunissem contra o Estado Novo.

Perseguição a cavalo na Rua do Quebra Costas

A resistência fazia-se a qualquer altura. Durante a Crise Académica, a ação policial era, por norma, a cavalo e os estudantes, para dificultar a perseguição, untavam com azeite ou sabão a Rua do Quebra Costas. Os cavalos da polícia que iam atrás dos estudantes acabavam por escorregar nesta zona, evidenciando a rebeldia da luta estudantil em Coimbra.

Magna do TAGV

As assembleias magnas realizadas nos primeiros momentos que seguiram a Revolução refletiam a instabilidade política e social que se sentia por todo o país. A liberdade devolveu os estudantes ao Teatro Académico de Gil Vicente, onde se geravam discussões agitadas, marcadas pela multiplicidade de opiniões e ideologias, das mais conservadoras às mais liberais. Cenouras, como era caricaturalmente chamado, era um estudante com presença assídua nas Magnas, conhecido por interromper sucessivamente os colegas com frases de protesto do MRPP (Movimento Reorganizativo do Partido do Proletariado). Um repúblico dos Galifões, num ato de fúria e desespero, pendura o Cenouras do 2º piso da plateia, ameaçando-o para que deixasse de ser um entrave à discussão. Nesse momento, o camarada Cenouras perdeu a voz, e com o medo começou a fazer xixi pelas pernas abaixo. A peripécia gerou uma grande altercação na assembleia, provando o ambiente impulsivo e irracional que se vivia. 

Humberto Delgado no Largo da Portagem

 A 31 de maio de 1958, a propósito das eleições presidenciais, Humberto Delgado esteve em Coimbra. A partir de uma das varandas do hotel Astória, o candidato falou para a multidão que encheu o Largo da Portagem.

Nessas eleições concorriam Américo Thomaz, candidato pelo partido do regime ditatorial União Nacional, e Humberto Delgado, independente, que ficou conhecido como “o general sem medo” por enfrentar a ditadura salazarista. 

1º de maio de 1974

O primeiro Dia do Trabalhador em liberdade encheu a cidade de Coimbra de comemorações. As manifestações desta data marcaram o período de passagem democrática onde a voz do povo conseguiu passear livremente pelas ruas. Durante a ditadura, as manifestações que reivindicavam direitos da classe operária eram reprimidas e os seus organizadores detidos pela PIDE.