A cultura é algo que parece estar em constante decadência em Portugal, especialmente aquela que é a cultura popular, aquela que diz respeito aos nossos antepassados. Depois de um ensaio, num sábado muito chuvoso, Mariana sentou-se lado a lado com membros do Grupo Folclórico da Sanguinheira para dar de caras com esta triste realidade.
A Cultura a morrer e o Governo "a ver passar aviões"

Vídeo de arquivo
Vídeo de arquivo
O desacreditar de uma identidade coletiva
O salão Nobre da Junta de Freguesia acolhe o Grupo Folclórico da Sanguinheira nos seus ensaios semanais , mas é também onde são feitas as várias atividades desta pequena comunidade gandaresa: desde as aulas de música às reuniões de freguesia. E nela são várias as marcas deixadas por estas atividades A sala é fria no inverno e muito abafada no verão, como contam as gentes que ocupam este espaço para treinar semanalmente. Tudo se deve à velha estrutura do edifício. Ouvem-se os acordeões, as violas, os tamancos contra o chão e as vozes que conduzem o “Vira”. Este treino é-lhes familiar e enche-lhes o coração, mas parece ser consensual no grupo que o “apoio do Governo português há muito que não se sente”. Será que alguma vez o sentiram?
Após o ensaio, agora com uma sala recheada por conversas e risos de fundo, Vítor Teixeira, ou “Rato”, como é apelidado pelos seus colegas, de 58 anos e elemento fundador do grupo, conseguiu deixar claro que esta equipa tem uma vida bastante ativa e importante na espírito cultural da região, mas o trabalho que fizeram e continuam a fazer passa apenas pelos corpos que dançam, cantam e tocam, e que “não se pode contar com apoios que nunca chegam”.




Fotografia de Mariana Silva
Fotografia de Mariana Silva

Fotografia de Mariana Silva
Fotografia de Mariana Silva
Fundado em 1989, e afiliado em 1991 à Federação do Folclore Português, o grupo é composto por cerca de 50 elementos, desde dançarinos, cantores e instrumentistas. Aos olhos do grupo, existem várias vagas por ocupar, principalmente dançarinos, homens.
Antes mesmo do Grupo da Sanguinheira ser fundando, Rato achou por bem ir a um ensaio do Grupo Folclórico de Cadima avisar que “ia nascer um grupo na Sanguinheira, não para ser rival, mas para trazer mais informação, preservar mais aquilo que era nosso e ir a sítios que Cadima não tinha vindo”. Na sua génese, os elementos fundadores Vítor Teixeira, António Jorge, Célia Carvalho e Aldina Domingues, fizeram uma extensa pesquisa dos trajes, das danças e das músicas típicas.
Este trabalho passou por ir às diversas aldeias da freguesia, contactar o habitante “mais antigo” para recolher informações ou roupas que estes tivessem ainda por casa. Vítor Teixeira tratava essencialmente de conversar com a ajuda de Tozé, como o tratam, enquanto Aldina e Célia tratavam de apontar os pormenores que conseguiam apanhar.
A recolha acontecia todos os domingos de manhã depois da missa. Assim, era mais fácil apanhar todos os idosos que se deslocavam ao cemitério para decorar as campas dos seus entes queridos já falecidos. Demorou cerca de dois anos até ter o reportório completo.
Os quatro elementos que integraram a recolha das vestimentas da época, que remonta desde o fim do século XIX ao início do século XX, relembram muitas histórias que viveram junto dos idosos que entrevistaram, mas guardam no seu coração uma situação bastante caricata: uma senhora que tinha um xaile todo sujo pelas pombas no seu pátio. O lenço estava todo estragado, mas a partir do momento em que o começaram a limpar e a valorizá-lo, a “velhota” avisou, numa voz apreensiva, que era preciso trazê-lo de volta, senão a filha ralhava com ela.
Desta recolha, ilustram hoje alguns estratos sociais e certos tipos de roupa usados em diversos tipos de ocasiões: Noivos, Ver a Deus, Lavradores ricos, Caseiras, Domingueiros, Romeiros, Feirantes, Aguadeira, Mulher da Eira, Malhadores, Moleiros, Serrador, Maltez ou Caramelo, Homem do Gabão, entre outros.
No que toca às músicas recorreram, na altura, ao que chamava de “músico de ouvido”. Vítor Teixeira, encontrava-se, também aos domingos, com o “Toino Taboeira”, para tocar concertina. Nesta brincadeira desgarrada, as memórias pareciam voltar à cabeça esquecida do músico. Daqui renasceu a modinha de roda "Eu não vou lá acima à sala", a "Dança Palaciana", que surgiu no seio calejado através de quem espreitava nas portas ricas, e outras músicas e danças como o "Verde Gaio", "Fui-me confessar" e "Tens a parreirinha à porta".
As danças, bem como os trajes, foram todas recolhidas perto das pessoas. Numa estratégia de “porta em porta”.
Rato contou ainda algumas críticas que terá ouvido acerca dos trajes que recolheu: “o grupo da Sanguinheira é todo muito escuro, é triste, pouco vistoso”. E isto tem uma razão de ser, falamos de uma época que remonta a um Portugal muito rural, onde o trabalho nas terras perlongava-se desde o nascer ao pôr do sol. “Não fossemos nós uma região pobre”, como diz Vítor, a essência dos trajes teria de espelhar a realidade da época, o trabalho. “Mas o traje sendo ele menos vistoso, pode ser o traje com mais história, com mais valor, com mais significado e com muito mais importância”, reflete Vítor. Desta detalhada recolha, veio o fruto no ano de 2000. O grupo foi considerado pela Federação, ainda que não tenha sido publicamente, “o grupo mais bem-trajado a nível nacional”.


























Fotografias de arquivo do GFS
Fotografias de arquivo do GFS
"Foi desaprender..."
Com a pandemia da Covid-19 à porta no início de 2020, pelo menos em Portugal, muitas das rotinas deste grupo desmoronaram-se.A sala que antes estava repleta de gente com vontade de dançar, cantar e representar a cultura gandaresa ,tornou-se vazia e silenciosa. Os ensaios foram cancelados, sem data previsível de regresso, todos os seus espetáculos mais próximos também deixaram de poder acontecer. No entanto, esta quebra de rotina foi mais difícil por deixarem de se ver regularmente, deixaram de poder ver a família que ali criaram.
Passada a onda de destruição pandémica, Micael Sacarrão, membro do grupo desde 2004, considera que “após a pandemia ia correr pior, mas correu bem e conseguimos retomar aquilo que tínhamos”. Relembra ainda que quando entrou para o grupo no início dos anos 2000, fê-lo um pouco para escapar. Filho de pais emigrantes, e criado pela avó, tinha em casa uma educação bastante rígida e usou o folclore como forma de poder sair de casa e fazer as brincadeiras típicas de uma criança de 10 anos, bem como aproveitar o tempo com os seus amigos.
Para Celeste Oliveira, atual Presidente do grupo, a rotina é retomada com “muita vontade”, sendo que entraram 9 elementos. No entanto, a paragem foi péssima, e no seu através do seu olhar “foi desaprender”. Apesar de ser um elemento que esteve presente na criação do grupo, esteve vinte e nove anos emigrada o que impossibilitou a sua participação no folclore da Sanguinheira. Teria reentrado apenas um ano antes de a pandemia começar, e, isso, “foi complicado”.
Algo que Celeste vinca é a perda de vários elementos com mais idade, devido à pandemia. Como é um grupo essencialmente constituído por grupos etários de adultos e idosos, é natural que o seu núcleo seja cada vez menor, mas é de acrescentar que são poucos os jovens que se integram nestas iniciativas. Ficaram especialmente abalados por não terem tido a oportunidade de se despedir de quem foi importante no grupo e que perdeu a vida neste período de isolamento.
No entanto, Celeste partilha ainda um lado mais positivo e esperançoso, afirmando que sentiu “uma grande vontade de recomeçar e isso verificou-se depois no começo”, e considerando que “é importante estarmos motivados”.






Fotografias de arquivo do GFS
Fotografias de arquivo do GFS
"Isso é folclore"
Para Vítor Teixeira a política portuguesa não vê o folclore como a identidade coletiva que é, já que o ano passado, Carlos Moedas criticou as ações do primeiro-ministro caracterizando-as como “isso é folclore”. Na sua essência, folclore é a cultura popular, ou como diz Rato, “traduzido à língua portuguesa é a cultura do povo”. A falta de cultura é tal, que apenas com as matérias que os grupos têm a nível nacional ser-se-ia capaz de tratar os materiais para preservar a cultura que nos diz algo. Esta premissa era já defendida por Augusto Santos, primeiro presidente da FFP.
Relembrando uma viagem que fizeram para atuar no estrangeiro, foram vários os elementos que destacaram esta memória. Em 2001, numa atuação no Brasil, que tinha lugares marcados e pagos, “as pessoas pagaram muito bem para nos verem” conta Vítor Teixeira. Assim que entraram em palco, um senhor da plateia cai inanimado.
“Daqui prova a nossa autenticidade era de tal ordem que nos mostrou que estávamos a fazer um trabalho a sério”. Um exemplo de um grande grupo de pessoas que emigram quando ainda são jovens e nunca mais têm contacto com as suas raízes. É um sentimento sem igual, “parece que voltam atrás no tempo e são apanhados pelo choque”, afirma Aldina, e talvez pela saudade, um sentimento que diz tanto ao povo português.
Apesar de estar a ter um bom recomeço, esta falta de apoio por parte do Governo bem como a crescente falta de interesse nas camadas mais jovens deixam um sentimento nostálgico nos membros que aqui continuam há muito. Numa ótica mais pessimista, há membros que acreditam que “o folclore vai acabar”, mas por outro lado temos uma visão mais otimista que nos diz que devemos “incutir o folclore não como disciplina, mas como parte integrante cultural da educação dos mais novos”. É por estas pessoas que se preocupam com a cultura popular, que ainda resiste e prevalece a memória do que os nossos antepassados viveram.






Fotografias de arquivo do GFS
Fotografias de arquivo do GFS
O Governo mata a identidade portuguesa sem dar conta que o faz
É certo que a Cultura é um dos setores que mais sofre quando chega a hora de repartir os dividendos do Orçamento de Estado. Tanto é, que no passado ano de 2021, dada a pandemia da Covid-19 e o congelamento destas atividades culturais por tempo indefinido, deixou milhares de famílias sem sustento financeiro.
O Orçamento de Estado de 2021 previa uma verba de 313,1 milhões de euros para o setor da cultura, excluindo a parcela da Rádio Televisão Portuguesa, o que significa um crescimento de 7,73% face o ano anterior. No entanto, este setor ocupa ainda uma misera fatia de 0,21% de todo o bolo orçamental.
No ano seguinte, a cultura contou com um ligeiro acréscimo de 14,2% em relação ao ano posterior, que se traduz num aumento de 313,1 milhões de euros para 390 milhões.
Para o atual ano de 2023,o Governo espera um salto de 23% no plano orçamental da cultura, prevendo uma receita de 504,3 milhões de euros. Este valor deixa o setor com uma lasca de 0,43%, ficando aquém da mítica meta de 1% desejada . No entanto, promete ainda uma fatia de 2,5% até 2026 atribuída a este setor. Mas será que esta fatia inclui as artes populares?
Apesar de os valores crescerem, são saltos pouco notórios. Pode dizer-se que o Plano de Recuperação e Resiliência têm prestado um contributo notável para a melhoria das condições de quem vive da cultura. Talvez para quem trabalha nos setores culturais de maior interesse, mas aqueles que fazem parte da sua vida a trabalhar para as artes populares como o folclore o futuro parece não ser tão sereno.
