A despenalização das interrupções voluntárias da gravidez em Portugal

Em 2007, a Lei nº17/2007 veio despenalizar a interrupção da gravidez por vontade própria em Portugal. Mas a luta pela despenalização da Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG), que só ganhou força no país no período pós-ditadura, levou mais de três décadas.
Foi no rescaldo da Revolução dos Cravos, a 4 de maio de 1974, que surgiu a primeira reivindicação do direito ao aborto livre e gratuito, numa brochura do Movimento de Libertação das Mulheres (MLM), que fundou, no ano seguinte, o Movimento pela Contracepção, Aborto Livre e Gratuito (MCALG).

Manifesto do Movimento Para a Contracepção e Aborto Livre e Gratuito, 1975
Manifesto do Movimento Para a Contracepção e Aborto Livre e Gratuito, 1975
"Praticam-se em Portugal cerca de 150.000 abortos clandestinos por ano, em condições sub-humanas que têm como consequência imediata não só a morte como a mutilação de milhares de mulheres.
Antes do 25 de Abril esta verdade era escandalosamente escondida a coberto de uma ideologia baseada na repressão direta e imediata de todos os direitos democráticos.
Hoje, continua-se a fugir da resolução deste problema retirando-lhe todo o conteúdo social uma vez que se pretende fazer acreditar que se trata de um assunto privado a ser resolvido na «intimidade do lar».
Nenhuma das instâncias oficiais mencionou até à data a questão do aborto, que tem estado ausente de todas as resoluções governamentais. Isto acontece porque os problemas que mais diretamente afetam as mulheres (53% da população) são ainda considerados secundários."
- Manifesto do MCALG
Em 1976, foi transmitida na RTP a reportagem "O aborto não é crime", da autoria da jornalista Maria Antónia Palla
Maria António Palla reportou um conjunto de consultas de contraceção e acompanhamento psicológico após a prática de abortos clandestinos através do método de "aspiração uterina". A reportagem originou várias contestações e Maria António Palla foi processada por atentado ao pudor e incitamento ao crime. Em 1979, a jornalista foi absolvida.

Mária Antónia Palla, 1972. Fotografia de Alfredo Cunha
Mária Antónia Palla, 1972. Fotografia de Alfredo Cunha
Em 1982, o PCP apresentou a primeira proposta na Assembleia da República sobre a despenalização do aborto
O projeto-lei do PCP que previa a despenalização da interrupção voluntária da gravidez até às 12 semanas de gestação "quando a mulher, em razão da situação familiar ou de grave carência económica, estivesse impossibilitada de assegurar ao nascituro condições razoáveis de subsistência e educação, ou quando a gravidez fosse susceptível de lhe criar uma situação social ou económica incomportável", foi rejeitado pela Assembleia da República, com 127 votos contra e 105 a favor.
Dois anos depois, a Assembleia da República aprovou o projeto do PS
O texto final da lei da despenalização do aborto foi aprovado em 1984 com os votos favoráveis do PS, PCP, MDP, UEDS, "Os Verdes" e de um deputado da ASDI. Votaram contra os parlamentares do PSD, CDS e dois deputados da ASDI.

Com a Lei nº 6/84, a interrupção voluntária da gravidez passou a ser permitida em casos de "perigo de morte ou de grave e irreversível lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida", em casos de "grave doença ou malformação" do feto e em casos em que houvessem "sérios indícios de que a gravidez resultou de violação da mulher". A interrupção da gravidez por opção própria, porém, continuava a constituir um crime punível com até três anos de prisão.
Passados 23 anos, a lei foi revista
Em 2007, o então Presidente da República, Aníbal Cavaco Silva, convocou um segundo referendo à despenalização da interrupção voluntária da gravidez. Ao contrário do primeiro referendo sobre o aborto, que se realizou em 1998 e terminou com a vitória do "não à despenalização" (com 50,07% dos votos), em 2007 o "sim" venceu com 59,3% dos votos. No entanto, tal como aconteceu com o primeiro referendo, os resultados não foram vinculativos, uma vez que mais de metade do eleitorado absteve-se da consulta popular. Ainda assim, o Governo Socialista respondeu à vontade expressa pela maioria dos votantes, com a Lei nº17/2007, que decreta a despenalização da interrupção da gravidez por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas de gestação, e vigora até hoje.