A gripe de 1918


A pandemia (esquecida) que marcou o século XX

Fotografia: National Museum of Health and Medicine

Fotografia: National Museum of Health and Medicine

Pneumónica. Gripe espanhola. Gripe das trincheiras. Nomes não bastaram para nomear a influenza pandémica de 1918, uma das mais severas pandemias da história recente. Num contexto de guerra e de respostas tardias, floresceu aquela que se veio a conhecer como “mãe de todas as epidemias modernas”.

A Primeira Grande Guerra já contava os seus quatro anos, mas ainda não se tinha esperança de um fim próximo. Por entre as fissuras deixadas com anos de conflito uma nova cepa de influenza espalhou-se pelo mundo, infetando pelo menos um terço da população mundial, pelo menos 500 milhões de pessoas, e deixando um rasto de entre 40 e 50 milhões de mortos.

A medicina deixava de se basear em remédios caseiros e charlatanismo e começava a assemelhar-se àquilo que se conhece nos dias atuais. Contudo, apesar de as primeiras vacinas terem sido desenvolvidas ainda em meados do século XIX, a descoberta da existência dos vírus só se daria anos mais tarde, quase no início dos anos 1900.

Esse desconhecimento científico levou a que muitos médicos suspeitassem que a influenza fosse causada por uma bactéria, a Haemophilus influenzae. Esta possibilidade foi posteriormente descartada, em 1923, quando se comprovou que a gripe era causada por vírus da família Orthomyxoviridae.

Sem antivirais, vacinas ou antibióticos para tratar as infeções concomitantes (a penicilina só seria descoberta dez anos mais tarde), os tratamentos eram limitados, e o número de mortos superou a capacidade de sepultamentos de algumas cidades, onde corpos juntavam-se nas ruas por dias durante a segunda vaga da doença.

I

A vaga da primavera e as origens do vírus

O nome com que ficou conhecida a doença pode enganar: a gripe espanhola não surgiu em Espanha, mas foi assim chamada em grande parte do globo pelo facto de haver ampla notificação dos casos. Assim, o país, que era neutro na guerra e mantinha uma imprensa livre, tornou-se o epicentro do surto aos olhos da comunidade internacional.

Entretanto, segundo arquivos do Centro para Prevenção e Controlo de Doenças dos EUA (CDC), o surto terá começado em Camp Funston, um estabelecimento militar em Fort Riley, no estado do Kansas. Neste sítio, em março de 1918, pelo menos uma centena de militares contraíram uma doença que se assemelhava à gripe comum. Em apenas uma semana, os casos quintuplicaram.

“A gripe espalhou-se rapidamente nos quartéis militares, onde homens dividiam espaços próximos. A segunda vaga ocorreu no outono de 1918 e foi a mais severa. A terceira vaga da doença ocorreu durante o inverno e a primavera de 1919”, refere o CDC.

Dos Estados Unidos, os soldados infetados partiam para França, chegando à cidade portuária de Brest, na região da Bretanha. Segundo o CDC, este movimento de elevados números de soldados para o outro lado do Atlântico espalhou a gripe num continente já fragilizado pelos conflitos. De facto, como relembra o jornal El Español, o primeiro caso da doença em Madrid foi notificado apenas em maio do mesmo ano, um mês após os primeiros registos nos Estados Unidos.

A primeira vaga teve uma taxa de letalidade baixa, comparável a outras gripes epidemicas do fim do século XIX. Apesar de lutarem contra um inimigo desconhecido, os métodos de transmissão já se conheciam e podiam ser minimamente contidos.

As recomendações foram sempre claras: usar máscaras em locais públicos e manter boa higiene social. No entanto, as autoridades de saúde não quiseram, naquele momento, impor medidas de restrição e quarentena durante a guerra.

As origens exatas do vírus que causou a pandemia de 1918 continuam, um século mais tarde, desconhecidas. Mas a tese mais aceita aponta para a possibilidade de o vírus ter sido originado entre aves e, posteriormente, desenvolvido a capacidade de infetar humanos, seja diretamente ou através de recombinações genéticas com outros influenzavírus.

II

O mês mais mortal do século XX

O outubro de 1918 foi considerado o mês mais letal na história dos Estados Unidos. Segundo dados levantados pelo New York Times em novembro daquele ano, o número de mortes causadas pela gripe espanhola ultrapassara o número de mortos nos combates. Para além disso, as fatalidades de soldados por influenza nos campos de batalha seriam próximas ao número de mortos em conflito.

Estimativas do CDC apontam que, apenas em outubro de 1918, pelo menos 195 mil americanos morreram em decorrência da gripe espanhola. A Filadélfia, duramente afetada pela pandemia, chegou a ter, a 12 de outubro de 1918, mais de mil corpos à espera de sepultamento, alguns dos quais por mais de uma semana. A falta de profissionais de saúde fez com que a Escola de Enfermagem de Chicago anunciasse cursos para formação de enfermeiras em casa.

Anúncio da Escola de Enfermagem de Chicago. Com a pandemia e a Primeira Grande Guerra, a demanda por profissionais de saúde aumentou vertiginosamente. Fotografia: Influenza Archives/University of Michigan

Anúncio da Escola de Enfermagem de Chicago. Com a pandemia e a Primeira Grande Guerra, a demanda por profissionais de saúde aumentou vertiginosamente. Fotografia: Influenza Archives/University of Michigan

Anúncio da Escola de Enfermagem de Chicago. Com a pandemia e a Primeira Grande Guerra, a demanda por profissionais de saúde aumentou vertiginosamente. Fotografia: Influenza Archives/University of Michigan

Se na primeira vaga a maior parte dos mortos pertencia a grupos de risco, a segunda teve uma maior letalidade entre jovens e adultos saudáveis. Assim, a curva do gráfico dos números de mortos por faixa etária ficou conhecida como “a curva w”, haja vista o elevado número de mortos entre pessoas saudáveis de 20 a 40 anos.

As explicações sobre o aumento da letalidade durante a segunda vaga variam. Alguns especialistas apontam para a possibilidade de que, durante o verão de 1918, o vírus terá sofrido uma mutação aleatória que aumentou a sua letalidade. Outra explicação relaciona-se com as dificuldades económicas, a fome e a desnutrição causadas pelo contexto de guerra.

Dos campos de combate na Europa, os soldados com sintomas mais graves da doença eram enviados de volta aos Estados Unidos, enquanto aqueles que tinham sintomas leves continuavam a lutar. Este retorno, que aumentou o contacto com mais pessoas, poderá ter aumentado a transmissão de variedades mais letais do vírus entre soldados e civis, causando a segunda vaga de influenza epidémica.

III

Como a pandemia mudou o quotidiano

Para conter o aumento dos casos de infeção pela influenza epidémica, o distanciamento social – prática que se mantém até aos dias de hoje no contexto da pandemia de Covid-19 – foi uma das principais medidas exortadas pelas autoridades de saúde. O uso de máscara e a proibição de aglomerações públicas em lugares fechados também foi imposto em algumas cidades.

Não tendo sido ainda criados respiradores N95 ou máscaras padronizadas em tecido não tecido, médicos, enfermeiras e cidadãos utilizavam máscaras feitas em gaze e outros tecidos mais porosos. Para colmatar a demanda crescente, voluntários e funcionários de instituições como a Cruz Vermelha Americana reuniam-se para produzir máscaras.

Em São Francisco, como mostra o canal História, tribunais passaram a funcionar em praças e outros espaços ao ar livre. Nesta cidade da costa oeste americana, um dos mais importantes meios de mitigar a moléstia foi a recomendação e posterior obrigatoriedade do uso de máscaras em espaços públicos. As penas para o descumprimento passavam por coimas de 5 dólares, cerca de 85 dólares nos dias atuais, e poderiam chegar à pena de prisão.

Com estas restrições, apenas impostas durante a escalada da segunda vaga, em muitas cidades americanas, barbeiros passaram a trabalhar nas ruas, constituindo verdadeiras barbearias ao ar livre. Escolas, igrejas, teatros e bares tiveram de ser fechados em inúmeros municípios americanos.

Por este motivo, com as atividades em espaços fechados restritas pelas autoridades, atividades ao ar livre como idas ao parque e a feiras passaram a ter um papel importante na vida social de muitas cidades estadunidenses. Até então, acreditava-se que o sol e o ar fresco poderiam ser capazes de destruir o patógeno causador da gripe.

Todavia, um sentimento de revolta contra as máscaras crescia entre a população. Muitos recusavam-se a usar os tecidos protetivos, ao ponto de, em São Francisco, um grupo antimáscaras ser criado. A Liga Antimáscara de São Francisco incluía, entre os seus membros, médicos e alguns membros das autoridades de saúde que acreditavam que o uso de máscaras não trazia benefícios.

A liga apresentou uma petição pelo levantamento da obrigatoriedade das máscaras a 27 de janeiro de 1919. A atitude teve visibilidade mundial, tendo diversos jornais noticiado o protesto da organização. Com a dimuição nas taxas de trasmissão do vírus, as autoridades acabaram por levantar as medidas restritivas em fevereiro do mesmo ano.

IV

As facetas da pandemia no mundo

Num mundo em transformação, as desigualdades sociais e as características de cada nação foram preponderantes na forma como a doença evoluiu. Se no início do século XX mesmo as nações mais ricas terem visto os seus sistemas de saúde colapsarem, a influenza afetou duramente os países mais pobres do mundo.

Esquecida entre os países mais afetados pela pneumónica foi a Índia, onde a doença ficou conhecida como febre ou influenza de Bombaim (atual Mumbai). À época, a então colónia britânica atingiu o maior número de mortos pela gripe epidémica no mundo: de 14 a 17 milhões de pessoas. Muitas das mortes estavam também ligadas à fome e à falta de condições sanitárias. Nirala, um dos principais poetas indianos, chegou a descrever as águas do Ganges como “inchadas” por corpos mortos.

A importância da Primeira Guerra fez com que, no noticiário português, poucas menções à epidemia existissem. No entanto, não quis isto dizer que o país não sofreu com a pneumónica: a doença inundou o país a grande velocidade. Segundo o Diário de Notícias, o número oficial de vítimas é superior a 60 mil mortos, uma das maiores taxas para doenças do género no país.

É provável que a gripe tenha sido trazida por trabalhadores sazonais alentejanos que iam para Badajoz e Olivença. A primeira morte foi registada no fim de maio em Vila Viçosa, no Alentejo, e, um mês depois, a gripe já causava vítimas em Leiria e outras cidades a norte. Num país rural e com pouca infraestrutura, a doença floresceu, mas esqueceu-se na história com o passar das décadas.

No Brasil, o cenário foi grotesco. Corpos apodreciam nas ruas da então capital da república, sem coveiros para os enterrar. De tempos em tempos, carroças levavam os corpos, em montes, aos cemitérios. O vírus veio num transatlântico da Europa, o Demerara, de que desembarcaram passageiros infetados no Recife, em Salvador e no Rio de Janeiro.

O jornal carioca Gazeta de Notícias descrevia a capital brasileira como “um vasto hospital”. Na primeira página, um pedido de socorro: farmácias já não têm mais medicamentos para atender à população enferma, enquanto famílias inteiras padecem ante a epidemia nos subúrbios da cidade. Devido ao elevado número de mortes, boatos corriam que a Santa Casa da Misericórdia acelerava a morte de doentes com um chá envenenado, apelidado “chá da meia-noite” por ser administrado aos pacientes durante a madrugada.

Os casos desaparecem no país abruptamente, sendo que em dezembro de 1918 os contágios já haviam diminuído. A lenda do “chá da meia-noite” persistiu, sendo levada às ruas cariocas pelos foliões no carnaval de 1919, seja nos bailes ou nos blocos e nos seus carros alegóricos que percorriam o Rio de Janeiro.

A pandemia cessou, na maior parte do globo, no verão de 1919, mas em algumas regiões prosseguiu até meados de 1920. O influenzavírus que causou a pandemia perdeu-se no tempo, mas investigações recentes revelam que a letalidade estava possivelmente ligada a três genes que enfraqueciam os brônquios afetados, facilitando a infeção por bactérias. Um século mais tarde, ainda restam perguntas sobre a pandemia que marcou o primeiro quarto do século XX.

Fontes

  • The 1918 Flu Pandemic: Why It Matters 100 Years Later. CDC
  • Why the Second Wave of the 1918 Spanish Flu Was So Deadly. History
  • Em 1918, gripe espanhola espalhou morte e pânico e gerou a semente do SUS. El País Brasil
  • Gripe Espanhola: Menosprezada em 1918, epidemia parou o Rio e matou presidente. O Globo
  • The American Influenza Epidemic of 1918-1919: A digital encyclopedia. Influenza Archive
  • 100 years ago, 'Spanish flu' shut down Philadelphia – and wiped out thousands. Philly Voice
  • What New York Looked Like During the 1918 Flu Pandemic. New York Times
  • Gripe espanhola foi mais letal na segunda vaga. 102 anos depois, pode repetir-se? Observador
  • Why October 1918 Was America's Deadliest Month Ever. History
  • 100 años de la gripe española: 50 millones de muertos explicados en 30 imágenes. El Español