A nova expansão do bordado em Portugal

Agulha, papel, tesoura

O desenho animado Lisa Simpson por Ana Carmela

O desenho animado Lisa Simpson por Ana Carmela

Nos últimos anos, uma nova geração propôs-se a pegar no bordado, juntando a tradição ao contemporâneo, quis dar-lhe uma nova vida. Dos tradicionais bastidores à decoração de roupa ou acessórios, quase tudo é possível bordar, os limites são da imaginação.


Com a pandemia que assolou o nosso país, muitos foram os que se viram confinados às paredes de casa na busca de novos hobbies que lhes ocupassem a mente e as mãos. A comunidade do bordado em Portugal tem assistido a um crescimento significativo. Aliados às redes sociais, observamos a emersão de muitos novos negócios artesanais, e neste caso específico a divulgação é fundamental para apresentar novas ideias e novas possibilidades.

Propus-me a falar com algumas destas novas bordadeiras, conhecer as suas histórias e projetos, debater as falhas, as problemáticas e o que esperam do futuro desta arte em Portugal.

Bordado de Viana do Castelo

Bordado de Viana do Castelo

Detalhes do tradicional Lenço dos Namorados

Detalhes do tradicional Lenço dos Namorados

Pormenor de bordado em fio de seda por Cláudia Simões

Pormenor de bordado em fio de seda por Cláudia Simões

A artista retrata frequentemente a evolução dos trabalhos na sua página do Instagram: @littlestitchesportugal

A artista retrata frequentemente a evolução dos trabalhos na sua página do Instagram: @littlestitchesportugal

Fotos por Cláudia Simões

Bordados Lusos

O bordado tem um longo e rico percurso que remonta à pré-história; já os homens das cavernas usavam o ponto cruz para a confeção das suas roupas ou decoração de bens-materiais. Ao longo dos tempos o bordado ganhou novas técnicas e passou a fazer parte da tradição de vários países, entre os quais Portugal.

Os bordados tradicionais portugueses destacam-se pelas técnicas, materiais e suportes utilizados. Muitos dos pontos que encontramos hoje no nosso país tiveram origem na época dos Descobrimentos, os portugueses copiavam e assimilavam técnicas trazidas de fora e acrescentavam elementos próprios e originais, tornando-os característicos de determinadas zonas, como os bordados de Castelo Branco, feitos em fio natural de seda.

É de lá que vem Cláudia Simões; ganhou interesse por esta arte através do site Pinterest, que serve para divulgar imagens e ideias. Foi ali que nasceu a vontade de aprender a bordar, decidiu conjugar esta vontade com a tradição da própria terra e acabou por se apaixonar pela forma “tão rica e cheia de significado de bordar com fio de seda”.

Através do Youtube, como tantas outras novas bordadeiras, aprendeu a dar os primeiros pontos. Evoluiu, e hoje à parte da gestão da página que ajudou a criar, «Bordados Lusos», nascida de uma “lacuna e necessidade de divulgação de uma comunidade que se dedica ao bordado feito à mão em Portugal”, é também bordadeira a tempo integral.

Claúdia aceita encomendas de todo o país, e já conta com interessantes colaborações no seu reportório, como a que fez com o perfumista Miguel Matos. Interessada em valorizar o trabalho manual português, aceitou também o pedido de me levar a conhecer o que se passa por trás dos bastidores.

A pandemia “ajudou” ao aparecimento de muitos novos pequenos negócios de artesanato, mas quantidade muitas vezes não é “sinónimo de qualidade”.

A grande preocupação da artista são as faltas de apoio a estes negócios: “Portugal tem um longo percurso a percorrer no que diz respeito ao artesanato e sobretudo ao bordado à mão”. Salvo raras exceções, como os bordados da região da Madeira ou de Viana do Castelo em que existe um investimento na divulgação, Cláudia teme que existam alguns “condenados ao esquecimento ou desaparecimento”.

Amor ao primeiro ponto

Ana Carmela desenhava mandalas e queria fazer dos desenhos algo diferente, fascinada com os desenhos de linhas feitos pela avó brasileira, decidiu experimentar: “comprei os materiais básicos e pus mãos à obra, foi amor à primeira vista, neste caso, ao primeiro ponto”.

Na faculdade estudou antropologia e posteriormente cozinha e pastelaria, mas agora é “bordadeira full time”.

Mostra os seus trabalhos no Instagram, uma rede social bastante visual, o que a torna perfeita para a divulgação destes, quer por fotos ou vídeos. Basta olhar pela primeira vez para a sua página para perceber que os animais são frequentemente a sua inspiração, nomeadamente os gatos.

O gato Cuba por Carmela do Avesso

O gato Cuba por Carmela do Avesso

Carmela do Avesso, a sua personagem dos bordados, começou por “procurar inspiração nas plantas e nos corpos femininos” e depois “veio a vontade de bordar animais”. Quanto aos gatos, explica que ao “bordar o gato de uma amiga” acabou por se “apaixonar”, tal como os clientes, porque foram surgindo muitas encomendas e, “de repente, só tinha gatos”.

Durante o contexto pandémico o interesse pelo que é feito à mão cresceu, acompanhando o crescimento destes novos negócios, “posso dizer confiante que a comunidade do bordado cresceu muito com a pandemia” explica Ana, “aparecem muitas novas páginas e pessoal interessando por artes manuais”.

O gato Mel bordado por Carmela

O gato Mel bordado por Carmela

E acredita que “só vai crescer”. Mas até as relações mais bonitas têm problemas, no caso, o problema é mais uma vez a falta de apoio “em todas as áreas artísticas”, “em todos os sentidos”.

Processo de contorno de fotografia por Carmela do Avesso

Fotos e vídeos por Ana Carmela

“Hobby relaxante”

Marta Ramos tem 26 anos e gere a página de bordado Ginger & Stitch no Instagram, neta de um alfaiate e de uma costureira, a linha e a agulha sempre fizeram parte da sua vida.

Começou a bordar como hobby há 3 anos atrás, concilia este negócio com o seu estúdio de fotografia, passou a comercializar os seus trabalhos aquando de uma pausa do estúdio e com a crescente de clientes nunca mais parou.

Gosta de fazer peças simples, “com frases icónicas” ou piadas entre amigos. No fundo, a possibilidade de misturar “um estilo tão tradicional, como o ponto cruz e juntar uma frase atual”.

Entre as suas obras mais desafiantes está a capa do Time Out Portugal, em ponto cruz, para uma edição especial de natal, que demorou quase 2 semanas a ser realizada.

Capa da Time Out Portugal em ponto cruz, por Ginger & Stitch

Capa da Time Out Portugal em ponto cruz, por Ginger & Stitch

Entende que este é “sem dúvida” um negócio em expansão que cresceu nomeadamente na quarentena, como “havia imenso tempo livre as pessoas viraram-se para os hobbies que há muito queriam aprender, e a verdade é que é um hobby relaxante”.

Seja como ocupação de tempo ou ocupação integral o bordado tem ganho destaque nas novas gerações. A pandemia foi propícia a esta nova expansão e as redes sociais as maiores aliadas.

Marta reconhece que há “mais valorização por parte do pessoal mais jovem” por terem surgido novas “maneiras de integrar artesanato em tendências atuais”. E no caso específico do bordado está confiante que este estará “cada vez mais presente no dia a dia”.

Dito português bordado em bastidor

Dito português bordado em bastidor

Adaptação ao bordado de uma frase icónica portuguesa.

Adaptação ao bordado de uma frase icónica portuguesa.

Palavra passe da internet bordada em bastidor. Excelente exemplo de como adaptar a tradição ao contemporâneo.

Palavra passe da internet bordada em bastidor. Excelente exemplo de como adaptar a tradição ao contemporâneo.

Homenagem ao humorista Bruno Aleixo

Homenagem ao humorista Bruno Aleixo

Fotos por Marta Ramos

Primeiro são feitos os contornos da imagem

Primeiro são feitos os contornos da imagem

Só depois da imagem estar no tecido começa o trabalho da agulha.

Só depois da imagem estar no tecido começa o trabalho da agulha.

Último retoques antes do envio

Último retoques antes do envio

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Primeiro são feitos os contornos da imagem

Primeiro são feitos os contornos da imagem

Só depois da imagem estar no tecido começa o trabalho da agulha.

Só depois da imagem estar no tecido começa o trabalho da agulha.

Último retoques antes do envio

Último retoques antes do envio

O Apoio

Foi no Natal que Carolina, também ela outrora estudante de jornalismo, descobriu o bordado. Queria oferecer aos familiares e amigos prendas “sustentáveis e com um significado especial” e depois de ver alguns trabalhos interessantes na Internet decidiu comprar as linhas e os bastidores.

Com a ajuda da mãe costureira confecionou as suas primeiras peças. Mais tarde, aconselhada pelos amigos a mostrar os seus bordados no Instagram, pensou “porque não?” e criou a Upendi Handmade.

Com as encomendas a multiplicarem-se, quis dar um toque mais pessoal e especial às suas obras ao conjugar duas paixões, as linhas e a fotografia. Foi assim que encontrou a sua especialidade, a fotografia bordada.

O cliente apresenta uma fotografia, uma memória especial, a que Carolina dá uma nova vida com a linha e a agulha.

Apesar de escassos, existem apoios a negócios artesanais, a Upendi Handmade foi um dos poucos que conseguiu estas ajudas. Carolina foi uma das selecionadas de um programa de incentivos da câmara de Albergaria-a-Velha. A câmara concede ajudas técnicas e financeiras, mas para a artista, o mais importante foi a força de continuar que veio com o reconhecimento.

Primeiro faz os contornos da foto, depois um esboço, Carolina pensa como vai aplicar os desenhos ao tecido, a seguir pensa nas cores, nas linhas e nos elementos que pode acrescentar, desde elementos florais a toques de aguarela. Só então começa o trabalho da agulha. Desde os primeiros esboços até ao ponto final, são horas ou dias de trabalho, o que torna todos os estes trabalhos especiais, quer para o cliente quer para a artista.

Carolina lamenta a falta de consideração pelo tempo que demoram os trabalhos manuais a serem feitos, “o tempo é precioso”, explica; dentro das suas más experiências com clientes, o que mais lhe custa é o tempo perdido em vão.

O processo de Carolina ao bordar os contornos das fotos

Fotos e vídeos por Carolina Marques

Fotografia bordada por Carolina Marques

O Futuro

No nosso país o bordado à mão subsistiu, sobreviveu à vaga industrial, mas por pouco. Na última década tentou superar o esquecimento agarrando-se às tradições quer dos trajes regionais, das peças feitas de linho, toalhas, centros de mesa ou lenços.

Esta tradição tem vivido da procura espontânea, os apoios são insuficientes e os que existem não lhe garantem defesa ou certificação.
Voltámos a falar com Cláudia Simões, que teme pelo futuro do próprio negócio: “é triste e penoso, querer dar continuidade a uma arte secular, mas não ter qualquer tipo de apoio”.
Para além da falta de apoios há a falta de valorização, “a maior parte das pessoas desconhece todo o processo que envolve um bordado e foca-se apenas no resultado final”. Antes do furo da agulha já houve um enorme decurso, um esboço, um desenho, passar este do papel para o tecido, escolher as linhas, as agulhas, “todas estas etapas demoram tempo e raramente são contabilizadas no preço final de um bordado”.
Neste sentido, Cláudia garante ser fundamental educar e informar o cliente para que este perceba “que está a comprar uma peça única e feita à mão e não uma peça produzida em massa”.
A nova geração de bordadeiras e bordadeiros (tendo em conta, claro, que esta arte é aberta a ambos os sexos, embora tradicionalmente enviesada no sentido de uma maior presença feminina) trouxe esperança de se preservar a tradição, à mão.
Quanto às especulações sobre o futuro, as opiniões dividem-se. Uns acreditam que este novo interesse e envolvimento pode ser garantia de continuidade.
Outros, como Cláudia, defendem que o esquecimento é iminente, pelas faltas de envolvimento quer do estado quer das pessoas em si, “a maior parte pensa que o trabalho feito à mão está fora de moda”, a maior parte pensa que é caro, mas “ninguém nasce a bordar, existe um investimento de tempo, nos materiais e em aulas e tudo isto é feito sem qualquer apoio”.
A artista lamenta ainda: “A seguir por este caminho dificilmente se consegue captar as novas gerações para o bordado e levar esta arte para o futuro.”

Tradicional bastidor

Tradicional bastidor