A nova geração à rasca: a habitação jovem em Coimbra

Difícil acesso a alojamento condigno registado desde 1983. Estudantes fazem pedidos de ajuda aos órgãos políticos.

Viver nos centros urbanos garante uma rotina de encontros com caras que, se não houver comunicação, não passam de meros extras num conto em que muitos se revêm como sendo o narrador ativo. Ao ser apenas possível presenciar o mundo diretamente através do olhar individual, isto pode impedir de reconhecer que se é apenas mais um figurante, entre tantos, que se incluem numa narrativa global. Daí ser essencial questionar: o que vai para além da minha visão? É neste sentido que é imprescindível compreender, por exemplo, as condições habitacionais em que estes rostos, mentalmente abstratos, ou não, vivem.

Em Coimbra, além da atual situação precária de habitação comum a todo o país, há ainda grande atenção no que toca ao alojamento estudantil. Já em 1983, na primeira edição do jornal universitário da altura - A CÁBULA - se escrevia que o problema estava, em parte, nos “senhorios ávidos de lucro fácil” que se lançavam “numa exploração desenfreada e galopante que não se sabe onde irá parar”. Na peça Habitação estudantil, que soluções?, os autores culpam as autoridades responsáveis e os órgãos autárquicos da cidade pela situação.

“O estudante chega a Coimbra e, nos seus ingénuos dezoito - dezanove anos, vê-se entregue e abandonado às garras (bem afiadas) dos senhorios particulares que, em troca de avultadas quantias, os encaixam num «buraco» qualquer sem condições mínimas”, introduzem os redatores.

A mesma edição conta, ainda, com o testemunho do antigo estudante Eurico Ventura, que relatava: sempre que vinham as férias os inquilinos partiam para o Norte e deixavam-nos sem possibilidade alguma de tomar banhos com água quente. Isto pode não ser muito incomodativo em Setembro, mas evidentemente que o é em Dezembro!”. O estudante acreditava que nem todos os arrendatários eram de uma “ganância cega”, mas que maioria o era. Na sua confissão, acrescentava o apelo para que os estudantes reivindicassem os seus direitos e a existência de mecanismos legais que garantissem a sua proteção, de forma a evitarem ser “a máquina de fazer dinheiro de uns quantos”.


Onde já dormiram os estudantes

Na quarta edição do atual jornal universitário - A CABRA - é apresentado um breve percurso do alojamento estudantil em Coimbra. Para começar, D. Dinis escreveu na Magna Charta Privilegiorum, a 15 de fevereiro de 1309: “os senhorios em circunstância alguma pudessem despejar os estudantes, salvo querendo os donos morar nelas, dá-las aos filhos casados ou outros descendentes”. Face a esta proposta, o autor da reportagem salienta que, “nesse tempo, o número de estudantes era minuto, bastando alguns pequenos colégios e quartos de aluguer”.

Contudo, só com a repentina carência habitacional de 1834 é que se ditou a emergência de criar repúblicas, espaços onde era possível um modo de vida mais acessível. Como explica o autor da peça Onde já dormiram os estudantes, apenas depois de 1971, com a disseminação do ensino e o desenvolvimento demográfico escolar, chegou “a era do apartamento” e a difusão das residências universitárias. Era um tempo, como é referido, de “especulação desenfreada, alojamento vendido a qualquer preço a troco de condições por vezes inumanas”.

Na mesma década, a Via Latina publicava o artigo intitulado O problema da habitação do estudante (1998). Neste texto, Artur Anselmo alertava que “a Universidade, como primordial monumento da mentalidade de cada país, é o areópago de ideias e de controvérsia que, através da sua estrutura e dos seus fins, modelados no cinzel universal do Pensamento, serve de ponte entre as aspirações da sua terra e a ansiedade do mundo”. Por esta razão, o aluno não compreendia as condições precárias que os estudantes estavam sujeitos a enfrentar. Reconhecia, assim, o papel das repúblicas em “sustentar um convívio de esforços e uma reunião de valores que (...) alguma coisa adiantaram no andamento da caixa económica do estudante”.

Arquivo da Secção de Jornalismo da Associação Académica de Coimbra

Arquivo da Secção de Jornalismo da Associação Académica de Coimbra

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Arquivo da Secção de Jornalismo da Associação Académica de Coimbra

Arquivo da Secção de Jornalismo da Associação Académica de Coimbra

“O fim para muitas casas”

Real República Prá-Kys-Tão

“Os habitantes das 24 Casas que ainda resistem enfrentam todos os dias problemas causados pela falta de apoios”

Face ao Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), aprovado em 2006, é exposto na edição 244 d’A CABRA que o mesmo “prevê a atualização dos contratos de arrendamento, mas também uma maior facilidade no despejo de inquilinos por incumprimento do contrato”. Além desta condição afetar arrendamentos, revelou ser também um problema para as repúblicas de Coimbra. No artigo, Renata Cambra, que fazia parte da república Prá-Kys-Tão, alertava que “ao aumentar os preços (das rendas) aumentam também os preços das casas em redor que alugam quartos a estudantes”, um problema paralelo à inflação de hoje. O também repúblico, João Azevedo, admitia que este podia ser “o fim para muitas casas”.

Já em 2012, ano de publicação da edição 244, as repúblicas sofriam dificuldades como a falta de condições estruturais, cortes nos apoios dos Serviços de Ação Social da Universidade de Coimbra (SASUC) e problemas em assuntos contratuais. Renata Cambra confessava: “o senhorio para nós é apenas um número para transferir a renda”.

Saltando para o presente ano, na última edição do ano letivo 2022/2023 do jornal universitário pode ler-se que, neste momento, “os habitantes das 24 Casas que ainda resistem enfrentam todos os dias problemas causados pela falta de apoios”. Verifica-se, assim, uma crise semelhante à apresentada em 2012. Na peça Repúblicas de Coimbra: “Se ele diz que pertence ao povo, o povo que venha cá”, é revelado que muitas repúblicas vivem um forte período de incerteza, sem saber se terão apoio monetário para aguentar o ano.

Em entrevista com A CABRA, o reitor da Universidade de Coimbra, Amílcar Falcão, comentou a falta de diálogo com os estudantes e César Sousa, repúblico da Bota-Abaixo, lamentou esta falta comunicação. O estudante sugeriu que, para começar, "respondam aos e-mails”. Acrescentou que chega a ser “ridículo”, por parte do reitor, afirmar que os estudantes “vão para os jornais fazer figuras tristes”.

Ao falar com Ferro, Bárbara e Bruna, moradores na república Rápo-Táxo, foi possível averiguar que há agora a necessidade de comprar o edifício. Os repúblicos contam que “ainda é muito dinheiro” e, assim, tiveram alguns apoios externos, nomeadamente da UC que lhes garantiu dez por cento do valor da casa. “Com a Câmara Municipal de Coimbra, tivemos este tempo todo a tentar marcar reuniões com eles, para ver se conseguíamos algum apoio, e eles disseram que vão fazer um regulamento em 2024 para as repúblicas se poderem candidatar a um apoio”: explica Ferro.

Quando questionados sobre os problemas infraestruturais da casa, os estudantes partilham: “aqui não é tão grave como em muitas outras repúblicas, mas estamos com infiltrações e, provavelmente, coisas que nós nem sabemos que são problemas porque não vem cá ninguém a regular há muito tempo”. Dão, ainda, exemplos de repúblicas na Alta onde existem problemas como térmitas ou tetos a cair. De acordo com os repúblicos, estas casas são sempre edifícios velhos, onde as más condições do telhado são comuns. Acrescentam que “há casas que já têm pisos inabitáveis” por esta razão.

Ao tentar solucionar os problemas que surgem na casa, os estudantes admitem: “a partir do momento em que dizíamos que eramos de uma república, que estávamos à procura de orçamentos, ninguém nos levava a sério”. As repúblicas são geridas por estudantes, na maioria dos casos, que têm de ser responsáveis por “finanças e resolver problemas da casa com as próprias mãos”, indicam.

“Há casas que já foram adquiridas pela universidade e que apresentam vários problemas, como humidade nas paredes, e, quando tentam resolver, não resolvem: passam uma camada de tinta para dizer que fizeram alguma coisa”, queixam-se os repúblicos em relação aos apoios da UC. Por isso, explicam que as casas ficam rapidamente degradadas.

As repúblicas acabam por ser a solução de vários jovens que vêm estudar em Coimbra. Isto porque, além do valor dos quartos ser mais acessível, este preço já incluí a alimentação e as despesas. “As repúblicas também dão um acolhimento a sério”, são como uma família, e “está-se muito mais presente na comunidade, há um sentimento de entreajuda”, declaram os membros da Rápo-Táxo.

No seguinte áudio é possível ouvir as perspetivas que estes jovens têm para o futuro das repúblicas de Coimbra:

Os repúblicos da Rápo-Táxo salientam que não se pode falar da universidade sem falar das repúblicas, afinal “se houvesse dedicação em reformar os problemas infraestruturais das repúblicas, haveria mais pessoas interessadas em entrar numa república”. Terminam ao indicar: “é uma experiência que guardas para a vida, a casa fala contigo, tem vida”.

No âmbito do projeto de mestrado Habita-te, Joana Carvalho, aluna do Mestrado em Relações Internacionais - Estudos da Paz, Segurança e Desenvolvimento, explica que o grupo se focou no tema da habitação jovem “porque é algo que tem sido muito falado nos últimos meses e que tem dado bastante preocupação à comunidade”. Indica que a ideia está em "criar consciencialização e vontade" para os jovens se mobilizarem em prol do da defesa ao seu direito à habitação, "que é um direito consagrado na Constituição Portuguesa e fundamental do ser humano".

Segundo a estudante, há que criar soluções para combater o problema que: “advém muito da neoliberalização do mercado imobiliário, que aumenta com o facto de termos salários baixos cá em Portugal, o que cria uma espécie de balança desequilibrada que torna a situação bastante insustentável”. A neoliberalização é especulação e aumento de preços, nas suas palavras. A estudante dá o exemplo que em Lisboa não choca as pessoas ter de pagar 600 euros por um quarto ou 900 euros por um T0. Acrescenta que estas condições são insuportáveis, tendo em conta que o salário mínimo nem a esse valor chega.

De acordo com Joana Carvalho, em Coimbra há “maior interesse no dinheiro fácil dos alojamentos locais, para haver lucro”. Não há oferta, por parte das instituições, de residências sociais condignas. Expõe: “temos uma situação ainda mais crítica que é a das repúblicas, que em vez de serem aproveitadas e publicitadas como uma alternativa de alojamento acessível, vemos precisamente o inverso”.

“Temos imensas casas que, neste momento, correm o risco de ser despejadas porque os senhorios querem se ver livres daquilo ao vender o imóvel”: declara a estudante. Joana Carvalho vê esta situação como uma preocupação, onde há uma “leviandade com que as autoridades competentes falam sobre o assunto e as medidas que estão a ser implementadas que são meramente paliativas e não vão ao fundo da questão: os baixos salários das famílias e a falta de oferta de alojamento acessível”.

Segundo a estudante, em Coimbra, o custo médio de um quarto está agora nos 250 euros, o que é “muito dinheiro”. Depois, verifica-se também uma insensibilidade para com a camada da população mais frágil, que “a partir do momento que falham um pagamento são logo metidos na rua”, destaca.

Joana Carvalho enumera, então, uma lista de possíveis soluções:

1)    Aumentar, em geral, os salários

2)    Regulamentar o mercado imobiliário

3)    Limitar a compra de imóveis

4)    Limitar a emissão de licenças para alojamento local nos centros urbanos

5)    Aumentar os subsídios de apoio à habitação jovem

6)    Criar linhas de crédito facilitadas para a compra de primeira habitação para os jovens

7)    Pegar nos edifícios devolutos no país, reabilitá-los e submetê-los ao âmbito da habitação pública

 

Assim, declara: “isto não vai acontecer enquanto o Governo e as autoridades competentes em relação a esta questão não encararem isto como um assunto sério que está a retirar qualidade de vida a imensas pessoas”.

Por fim, Joana Carvalho diz que gostava de deixar expresso que “esta é a nova geração à rasca”. Nesse sentido apela: “encarem esta situação como uma coisa séria e não lhe chamem crise, porque as crises passam - esta é a realidade para muitas pessoas desde o início”.