#AdiaENEM

As discrepâncias do sistema educacional brasileiro em tempos de pandemia

Se você está lendo essa matéria, isso significa que você tem acesso à Internet. Significa, também, muito provavelmente, que você faz uso dessa ferramenta para se informar, pesquisar, realizar videoconferências, assinar um serviço de streaming, ler e baixar artigos, entre outros. Óbvio? Talvez para mim e para você que, acostumados com uma hiperconectividade, lidamos naturalmente com essas tecnologias. 

Não tão óbvio assim para outros quase 70 milhões de brasileiros que não têm nenhum acesso à Internet, ou têm, mas é muito limitado. Essa outra realidade, desconhecida para muitos de nós, veio à tona e ganhou espaço para discussão com o movimento #AdiaENEM, que aponta as discrepâncias do sistema educacional brasileiro em tempos de pandemia. 

Foi em março de 2020, quando o Ministro da Educação Abraham Weintraub e o presidente do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira) anunciaram a data do ENEM - Exame Nacional do Ensino Médio, que estudantes e organizações estudantis começaram a se articular. 

Com as provas marcadas para 1 e 8 de novembro de 2020 e escolas públicas e privadas em todo o país fechadas por conta da pandemia da Covid-19, iniciou-se uma onda de protestos pelo Brasil em prol do adiamento do ENEM. Usando a hashtag #AdiaENEM e contando com o apoio de organizações estudantis, milhares de pessoas pressionaram o governo e conseguiram o suporte de algumas autoridades para colocar o assunto em pauta. 

Repercussão

Senadores

No dia 2 de abril, a Senadora Daniella Ribeiro (PP-PB) apresentou o Projeto de Lei 1277/2020, que prevê o adiamento de provas e exames de acesso ao ensino superior em caso de estado de calamidade ou de comprometimento do funcionamento regular das instituições de ensino no país, justamente o cenário atual do Brasil. 

Organizações estudantis

A UNE (União Nacional dos Estudantes) e a UBES (União Brasileira dos Estudantes Secundaristas) criaram uma campanha online para que, aqueles que tivessem acesso à Internet e apoiassem o movimento, votassem para a mudança de datas do ENEM. Com o mote “Para que nenhum estudante tenha seu ingresso na universidade prejudicado pela crise da Covid-19”, as organizações instituíram o dia 15 de maio como o Dia Nacional pelo #AdiaENEM. 

Órgãos Públicos

No dia 18 de maio, a Defensoria Pública da União (DPU) entrou com um recurso para que o Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3) revisse a decisão tomada no final de abril de realizar as provas do ENEM em novembro de 2020. Foi pedido o adiamento do exame alegando o despreparo dos alunos devido à suspensão das aulas em todas as escolas do país.  Além disso, a DPU apontou as desigualdades entre alunos de escolas particulares - que estão tendo aulas EAD (Ensino à distância) - e alunos de escolas públicas - muitos com acesso precário à Internet para acompanhar atividades online, e outros sem nem mesmo dispositivos que possibilitem o acesso a essas ferramentas. 

Autoridades

No mesmo dia em que a DPU entrou com o recurso, o presidente do Inep Alexandre Lopes disse, em um comunicado, que a data do ENEM não era “imutável”, mas que o Brasil estava passando por um momento muito incerto e, por isso, ele considerava “precipitado” fazer qualquer tipo de mudança, então manteria o exame para novembro de 2020.

O Ministro da Educação Abraham Weintraub se posicionou em relação ao assunto por meio de uma transmissão ao vivo em seu perfil do Instagram. Ele, que já vinha se mostrando bastante contrário à alteração das datas do ENEM, associou esse pedido, durante o vídeo, a uma estratégia de “partidecos de esquerda” para transformar os estudantes brasileiros em uma “massa de manobra”. 

População

Mais de 7.500 pessoas assistiram à live do Ministro da Educação. A maioria dos comentários - ao contrário do que afirmou o ministro, em vídeo - foram críticas a ele e à sua administração da pasta. Além de vincular o movimento #AdiaENEM a partidos de esquerda, Weintraub também afirmou que era uma mentira a falta de acesso à Internet no Brasil. O ministro concordou que, em tempos de pandemia, seria mais difícil para todos estudar, mas se manteve firme ao dizer que a crise sanitária brasileira vai passar logo e os estudantes que não têm internet em casa vão poder voltar a se educar nas escolas. 

Com a transmissão ao vivo de Abraham Weintraub  e, horas depois, a votação no Senado que decidiria pelo adiamento ou não do ENEM, a hashtag #AdiaENEM aumentou exponencialmente nas redes sociais. Brasileiros de todo o país fizeram a hashtag subir ao primeiro lugar do trending topics do Twitter, alcançando, em poucas horas, mais de 200 mil tweets. Nesse mesmo dia, a petição online da UNE e da UBES alcançou quase 340 mil assinaturas.

Ao mesmo tempo, o Senado Federal votou o Projeto de Lei (PL) 1277/2020, da Senadora Daniella Ribeiro (PP-PB), e aprovou o adiamento do ENEM quase por unanimidade. Foram 75 votos a favor e apenas um contrário, este registrado pelo Senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), filho do Presidente Jair Bolsonaro (sem partido). 

Após a grande mobilização popular, a aprovação do PL pelo Senado Federal e o encaminhamento deste texto para a avaliação da Câmara dos Deputados, o Inep e o Ministro da Educação anunciaram que o ENEM seria adiado “de 30 a 60 dias em relação ao que foi previsto nos editais”. Em nota oficial, as autoridades disseram que o procedimento para a escolha da nova data - dentro dos 60 dias possíveis - será feita pelos próprios candidatos inscritos no ENEM. O Inep irá realizar uma enquete online, no mês de junho, pela Página do Participante.

Acesso à Internet no Brasil

O acesso à Internet de qualidade pelos brasileiros foi um dos pontos mais importantes discutidos por estudantes e autoridades nos últimos meses. Entidades estudantis e reitores de instituições de ensino defendem o adiamento do ENEM sob a justificativa das disparidades entre alunos de escolas públicas e privadas.

Com todas as escolas fechadas no Brasil devido à pandemia do novo coronavírus, as instituições tiveram que se adaptar e implementar o EAD (ensino à distância).  Muitos alunos, especialmente os de escolas públicas, reclamam sobre a dificuldade em manter uma rotina de estudos. Os mais prejudicados são os que não têm condições sociais e financeiras para ter acesso à Internet ou nem mesmo a aparelhos para conexão com essa ferramenta. 

Por outro lado, opositores do movimento #AdiaENEM questionam a viabilidade de acesso à Internet por parte dos estudantes. Após a comoção nacional e a aprovação da troca das datas do ENEM, Arthur Weintraub, irmão do atual Ministro da Educação, publicou em seu perfil no twitter:

Para justificar esse questionamento, foi retirado um trecho do Podcast “Café da Manhã”, do dia 19 de maio, produzido pelo jornal Folha de S. Paulo. Esse episódio contou com a participação da repórter de economia e tecnologia Paula Soprana e tratou justamente do assunto sobre a desigualdade de acesso a uma Internet de qualidade entre os brasileiros.

No dia 29 de abril deste ano, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou que 43 milhões de pessoas não têm acesso à Internet no Brasil. Em áreas urbanas, o índice de cidadãos sem esse acesso corresponde a 20,6% das pessoas; em áreas rurais, é ainda maior: 53,5%. 

Somado a essa parcela da população, juntam-se as pessoas das classes sociais D e E. Estes têm Internet exclusivamente pelo celular, com acesso muito limitado, basicamente se resumindo a redes sociais como WhatsApp e Facebook. Em números totais, correspondem a aproximadamente 25 milhões de pessoas.

Assim, os dados viabilizados pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua - Tecnologia da Informação e Comunicação (Pnad Contínua TIC), de 2018, comprovam que quase 70 milhões de brasileiros têm um acesso à Internet considerado de baixa qualidade.

Escolas públicas X Escolas privadas

Articulações para o EAD

Com o crescimento rápido de infectados e de mortes pelo novo coronavírus no Brasil, as aulas presenciais em escolas e universidades foram suspensas. De uma hora para outra, as instituições de ensino precisaram se adaptar à realidade da implementação de um sistema que, antes, jamais havia sido imaginado a nível nacional: o EAD - ensino à distância. 

Uma grande preocupação surgiu com os alunos, especialmente os de Ensino Médio, que estavam se preparando para ingressar no ensino superior por meio da realização de exames e vestibulares. No país, as escolas se articularam como puderam para não interromper o ritmo de estudo dos alunos, mas foi inevitável que surgisse um questionamento quanto à disparidade de opções e acessibilidade entre os alunos de escola pública e privada. 

Rhelber Vieira, professor de História e Filosofia do Centro Educacional Mario Aguiar Primeiro, em Ponte Nova (MG), disse que a articulação da escola foi muito rápida. “Eu costumo dizer que, além de alunos, a gente também tem ‘clientes’, então assim... É uma situação diferente, porque a escola também está preocupada em manter esses ‘clientes’”, contou o professor, ao relatar a rapidez com que o sistema de ensino à distância foi oferecido aos seus alunos. 

Por outro lado, Rhelber admite que a rapidez assustou, de início, a maioria dos docentes. “Era tudo muito novo pra gente, né! Nós somos uma equipe de professores até bastante jovem, mas nós temos alguns profissionais mais velhos que sentiram ainda mais dificuldade com o EAD”. O professor conta que, antes da pandemia, já estava fazendo um curso de formação de tutores EAD pela Universidade Federal de Viçosa (UFV), mas, mesmo assim, achou a mudança no sistema de ensino muito desafiadora.

O professor Felipe Brasil Tourinho, que dá aulas de Física em três instituições particulares de ensino, em Brasília-DF, também conta que a implementação do EAD foi rápida. Ele ainda pontua sua visão sobre o adiamento do ENEM e as disparidades entre alunos da rede pública e da rede privada, no Brasil, em um depoimento enviado. 

No ensino público brasileiro, a realidade já é outra. O professor Hilbert Spinks, hoje Gestor da Escola Estadual Amaro Cavalcante, em Jardim de Piranhas (RN), conta que houve uma grande preocupação por parte dos docentes, que sabiam que nem todos os alunos conseguiriam acompanhar aulas online. Inicialmente, a escola mapeou as condições de cada discente e fez um levantamento no qual constatou que 100 dos 493 alunos da instituição não tinham condição nenhuma de acesso à Internet para realizar o EAD.

“Para aqueles que não conseguem acessar o sistema da escola para acompanhar os estudos por lá, nós estamos entregando atividades impressas. Marcamos um horário com cada um e eles vêm na escola buscar os papéis”, explica o Gestor. Hilbert Spinks também disse, durante a entrevista, que o Ministro da Educação “infelizmente tem alguns pensamentos que não condizem com a realidade”. O comentário referia-se à fala de Abraham Weintraub, em sua live, sobre os R$ 300 milhões investidos na implementação de Internet em todas as escolas urbanas da rede pública do país, e em 70% das escolas rurais.

“A nossa escola, ela fica numa cidade do interior, mas ela abrange alunos da zona rural”, explica Spinks. “O valor que chega aqui, para implantação de Internet e aplicação de recursos tecnológicos, é de R$ 3 mil, o que é um recurso muito pífio tendo em vista que a escola não tem nem um laboratório de informática. Como o ministro quer que tenhamos internet se, com esse dinheiro que chega, não dá nem para comprarmos os equipamentos?”.

Durante a entrevista, o professor também falou sobre a realidade da grande parte de seus alunos e comentou sobre a declaração do Ministro Weintraub, que disse que o ENEM não deveria ser visto como um “instrumento de reparo a injustiças sociais”.

A visão dos estudantes

Campanha do MEC X Realidade

Antes de aceitar a mudança nas datas do ENEM, o MEC (Ministério da Educação) lançou uma peça publicitária polêmica com o lema “O Brasil não pode parar”. A repercussão foi bastante negativa, uma vez que, no vídeo, quatro estudantes do Ensino Médio aparecem com celulares, notebooks e outros aparelhos tecnológicos de suporte com falas como: “Estude, de qualquer lugar, de diferentes formas. Por livros, Internet, com a ajuda à distância dos professores”. 

Dentre as maiores críticas, internautas tuitaram que a peça recomendava uma forma de estudo que não abrangia a todos, tendo em vista os alunos sem acesso a computadores e à Internet. Débora Aladim, uma das professoras de História com mais visibilidade dentro da plataforma do YouTube, postou um vídeo em que dizia que “o MEC está tentando fingir normalidade em uma situação de emergência de saúde pública”. Assista ao vídeo completo a seguir:

Outra atitude polêmica em relação ao preparo dos estudantes para o ENEM veio com uma fala do Ministro Abraham Weintraub na já citada live do dia 19 de maio. No vídeo, ele lê uma das perguntas feitas durante a transmissão ao vivo: “Dicas para superar o luto? Estudar morrendo… Não temos psicólogo para isso”. Em resposta ao comentário, o ministro diz: “Não precisa de psicólogo, precisa é de livro e estudar”. No entanto, dois alunos da rede pública que cederam entrevistas para essa matéria relataram sofrer ou ter colegas sofrendo com problemas de ansiedade e depressão.

O aluno da rede pública Pedro Henrique Limp, que frequenta o Colégio Estadual Professora Luiza Marinho, na Zona Norte do Rio de Janeiro, conversou sobre o seu preparo para o ENEM. Ele conta que o ensino da instituição é bem fraco e, atualmente, não está tendo transmissão de aulas ao vivo com os professores. 

Segundo Pedro, algumas aulas previamente gravadas, além de atividades escritas, são upadas na plataforma Google Classroom, a qual os alunos receberam aceso. Além do ensino público, Pedro também estava se preparando para fazer o ENEM com aulas em um curso particular de pré-vestibular. Ele conta que as realidades são muito diferentes:

Jordania Oliveira, de Catolé do Rocha, na Paraíba, conversou sobre como o acesso a uma educação de qualidade já abriu portas para ela. A estudante do terceiro ano do Ensino Médio frequenta a Escola Agrotécnica do Cajueiro, localizada no campus IV da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB).

Por ser anexa à instituição de ensino superior do estado, a escola de Jordania, que faz parte do sistema público de educação brasileiro, conta com mais recursos para as salas de aula, como acesso à Internet, por exemplo. Além disso, são oferecidos programas educacionais que concedem bolsas de estudo no exterior para os discentes. Este ano, Jordania foi uma dos 300 alunos contemplados pela oportunidade. 

“No meu caso, não só o ENEM como também o meu Ensino Médio são oportunidades de tentar diminuir as desigualdades entre um ensino público e um privado. Se não fosse por isso, jamais jovens como eu, filhos de pais agricultores, teriam condições de fazer um intercâmbio cultural para fora do país, como eu estou fazendo agora”, diz a estudante, que, atualmente, está na Colômbia. 

Ela completa: “O ENEM tem sim um impacto na diminuição das injustiças sociais, diferentemente do que o Ministro da Educação diz. Sei que ainda são poucas as pessoas que conseguem entrar em uma universidade depois de ter sido educado por um ensino precário, mas cada uma das pessoas que entra se torna uma alegria e uma inspiração para os demais”. 

Em contraste a essas realidades, alunos do ensino privado têm tido mais facilidade no preparo para exames. Murilo Tomazzoni, que frequenta o Centro Educacional Leonardo da Vinci, em Brasília-DF, diz que, desde o começo, a instituição foi bem preparada e articulada na implementação do EAD para os estudantes. 

Murilo relata que a sua rotina de estudos é composta por três aulas diárias em transmissão online ao vivo com os professores, na qual os alunos podem tirar dúvidas em tempo real, à medida que o conteúdo é passado. Além disso, diariamente são disponibilizadas atividades escritas, upadas pelos docentes via Google Classroom.  

Quando questionado sobre o adiamento do ENEM e sobre o seu preparo para o exame, Murilo disse que, mesmo com toda a estrutura de ensino que tem tido, ainda não se sente completamente preparado. Ele também contou que concorda com a mudança de datas do Exame Nacional, mas não acredita que isso seja suficiente para reparar os danos que os alunos da rede pública de ensino vêm sofrendo. 

“Sempre houve uma disparidade entre alunos de escola particular e de escola pública. O ensino privado, no Brasil, é estranhamente superior ao público. Enquanto nós, das escolas particulares, somos preparados para nos tornarmos diretores da NASA, alunos da rede pública às vezes mal têm aulas”, compara o estudante. Murilo ainda diz que, com a pandemia, as diferenças se agravam e os 30 a 60 dias propostos pelas autoridades não são suficientes para mudar uma realidade. “Esse adiamento é muito pouco tempo para deixar a concorrência do ENEM parecida com o normal. E olha que o ‘normal’, pra mim, já é bem ruim”. 

Educação Pública

Entrevista com Professor Vinícius Elias da Costa

Uma conversa sobre o sistema educacional público brasileiro e posturas do governo em relação ao #AdiaENEM.

Após a decisão de alterar as datas do ENEM entre 30 e 60 dias, o Ministro da Educação também adiou as datas de inscrição para o exame, que, inicialmente, iam até o dia 22 de maio (sexta-feira). Agora, os estudantes podem se candidatar até às 23h59 (horário de Brasília) do dia 27 de maio. 

A edição de 2020 do Exame Nacional do Ensino Médio segue sem data definida. Segundo informou o Inep, somente em junho os estudantes saberão a decisão final, votada pelos próprios candidatos via enquete online na Página do Participante. Nesse ínterim, seguem os esforços da comunidade estudantil em manter os estudos em tempos de pandemia.