As vidas passadas das lojas de Coimbra
As antigas ruas de Coimbra já contaram diversas histórias. Tanto os moradores da cidade como os turistas passageiros conhecem aqueles locais que pelas ruelas da baixa já serviram muitos propósitos, mas que pela preservação da sua história se destacam das outras lojas. Assim como a cidade, o comércio ganhou outra vida e, com ela, os edifícios que no passado contaram outras narrativas, hoje desenvolvem outras funções, através da manutenção dos espaços originais.
Coimbra possui um longo histórico de restauração e reaproveitamento de estruturas, pelo que até o próprio D. João III foi empreendedor da requalificação de espaços ao tornar o Paço Real de Alcáçova, hoje conhecido como o Paço das Escolas, na primeira universidade de Portugal, a Universidade de Coimbra. Assim como a Faculdade de Direito, muitas edificações antigas já deram espaço a outros negócios. São essas as lojas que enriquecem a baixa de Coimbra e dão novas vidas aos espaços que, através da sua rica arquitetura e história, compõem de forma única a cultura de Coimbra.
De mosteiro a café
Antes de ser o reconhecido café que é hoje em dia, as paredes do Santa Cruz albergaram múltiplas histórias. Após a sua dessacralização, deixou de ser convento para servir outras funções como esquadra de polícia, armazém de ferragens e mais tarde de canalizações, estação de bombeiros e inclusive serviu como casa funerária.
O café Santa Cruz abriu oficialmente as suas portas no dia 8 de maio de 1923. Localizado na Praça 8 de Maio, foi designado por decreto de lei como monumento nacional em 1927. Alexandre Marquês tornou-se dono do estabelecimento após a revolução dos cravos, em 1975. Hoje, Vítor Marquês, filho de Alexandre Marquês, é também sócio-gerente do estabelecimento, que considera ser um ponto de destaque na cidade pois “ocupa um edifício do séc. XVI como cafeteria”, atuando como “um fator diferenciador”. Dando ênfase à importância de salvaguardar a identidade dos edifícios históricos, Vítor Marquês explicou que, ao longo dos anos, tentou-se preservar o espaço original, evitando realizar alterações profundas.
“O que é importante é que não se descaracterizem os edifícios, porque cada edifício tem a sua própria alma e identidade e, fazendo alterações profundas, essa identidade perde-se, e descaracteriza-se o espaço”.
- Vítor Marquês
O edifício data de 1530, tempo em que serviu como mosteiro, onde habitavam os frades crúzios, que mais tarde vieram dar nome aos famosos doces conventuais de Coimbra. Com a extinção das ordens religiosas masculinas em 1834, o edifício conheceu um período de abandono que durante anos não acompanhou a evolução da cidade.
Atualmente, os espaldares de madeira localizados no interior do café são originais do séc. XX, as mesas e as cadeiras são réplicas dos móveis originais e a arquitetura original no interior da loja encontra-se intacta. A fachada é a única obra mais recente. Após várias intervenções, o resultado atual da parte exterior do negócio é um trabalho realizado em 1923, para a inauguração do café. Na altura, a intervenção foi motivo de polémica, mas na atualidade, Vítor Marquês assegura que “não se pretende alterar mais nada”, na medida em que “a configuração do café é uma vantagem”.
Explicou ainda que os espaços com traços tão distintivos “exigem algum investimento” e destacou que a manutenção e recuperação dos locais que estão abandonados não é fácil, mas que ao “dar atenção a alguns financiamentos específicos para o setor, existem capacidades para a sua revitalização e reabilitação”.
Explicou ainda que os espaços com traços tão distintivos “exigem algum investimento” e destacou que a manutenção e recuperação dos locais que estão abandonados não é fácil, mas que ao “dar atenção a alguns financiamentos específicos para o setor, existem capacidades para a sua revitalização e reabilitação”.
Vítor Marquês salientou ainda que o café Sta. Cruz se candidatou recentemente ao projeto “Lojas com História” da Câmara Municipal de Coimbra, iniciativa que teve origem em Lisboa no ano 2015. “A legislação que aprovou o projeto prevê benefícios em termos de investimento”, explicou o sócio-gerente, que explicou como tais benefícios “nunca passaram da legislação”, mas que, no fundo, “o próprio reconhecimento é destacável devido à visibilidade que confere ao negócio”.
O empresário é também o presidente da associação Cafés com História de Portugal, projeto oficializado em 2014. Esta associação sem fins lucrativos prevê facilitar as candidaturas para subsídios por parte do estado, com o grande objetivo de promover a realização de um vasto plano de atividades elaborado pela instituição. “A missão da associação passa pela promoção e divulgação dos cafés históricos” explica o empreendedor. Cumprindo uma série de requisitos, atualmente, há em Portugal 49 cafés com história, dos quais só um em Coimbra, o Sta. Cruz.
“Estamos a desvirtuar um pouco aquilo que é o apoio ao setor”
- Vítor Marques
Quando questionado sobre os apoios oferecidos pelo estado para este tipo de estabelecimentos, Vítor Marques explicou que negócios como o seu só beneficiam dos apoios disponibilizados pelo turismo de Portugal. Ainda, alegou que a Classificação de Atividade Económica (CAE) deste tipo de cafés não facilitou, pois “até 2020, não houve nenhum sistema de incentivos que permitisse às empresas inseridas dessa CAE, candidatarem-se a fundos comunitários”. O sócio-gerente do Café Sta. Cruz elogiou os apoios dados ao turismo durante os dois primeiros anos da pandemia, mas comentou que, atualmente, já não eram tão atrativos, referindo que “existem apoios, mas têm que ser bem estudados e bem enquadrados”.
De igreja a centro comercial
Localizado na Rua da Sofia, património mundial declarado pela UNESCO em 2013, encontra-se o Centro Comercial Sofia, também conhecido como as galerias e a Igreja de São Domingos.
Para muitos, é apenas mais um edifício de fachada interessante na conhecida rua da Baixa de Coimbra, mas para outros é um espaço com muito potencial a ser explorado.
“O lugar nem sempre foi ocupado por um shopping”, explicou João Tavares, dono do Sofia Bares, café que gere há 37 anos. O convento de São Domingos data ao ano de 1227, altura em que se encontrava junto ao rio. No entanto, devido aos danos gerados pelas cheias do Mondego, foi autorizada a construção de um novo mosteiro, que se estabeleceu na Rua da Sofia em 1546. Tal edifício nunca chegou a ser concluído devido a uma conjuntura económica desfavorável, ficando ao abandono até o século XIX, tempo em que o convento foi transformado na estação de autocarros dos Oliveiras de Águeda.
“Ao longo do tempo, (o estado) deixou decair o património, não lhe deram importância, Como já tinham muito património em Coimbra, muitas igrejas e monumentos”.
O shopping foi inaugurado em 1982. Para a época, a estrutura original do convento já tinha sido deteriorada, mas a arquiteta responsável tentou incorporar o que restava do monumento no novo edifício. Nos dias de hoje, ainda é possível observar parte do monumento integrado no centro comercial, mais especificamente a Capela do Tesoureiro, elemento que foi melhor preservado, na medida em que ainda se podem apreciar os detalhes do teto abobadado no local. A parte interior da capela está exposta no museu Machado de Castro, após ter sido desmontada e relocalizada no próprio museu em 1967.
“O espaço onde se encontrava a capela é um café há já vinte anos”, explicou João Tavares, dono do negócio situado em frente da capela. Após sete proprietários, o último dono do café da capela terá falecido há três anos e, desde então, o estabelecimento não voltou a abrir as portas.
João Tavares comentou que a reocupação da capela “poderia contribuir para atrair pessoas, e aumentar a valorização do local e do espaço a sua volta”. De acordo com esta ideia, a responsável pela loja Tatty Bibelots, Lourdes Ferreira, alega que “se esse espaço estivesse a ser aproveitado, haveria uma dinâmica diferente nas galerias”.
Os donos dos negócios explicaram que, em tempos, quando o café estava aberto, “ainda passava um ou outro turista para admirar o espaço”. Hoje em dia “passa muito ao lado”, destacou o gerente do café, que, com alguma pena, expôs que “os próprios moradores de Coimbra desconhecem a existência da capela”.
“Eu acho que quem devia ter tomado conta desse espaço devia ter sido a CMC”, opinou Lourdes Ferreira que, apesar de estar no centro comercial desde a abertura do mesmo, confessou desconhecer o que terá acontecido para a capela chegar às condições em que se encontra. ACMC desclassificou a capela em 2014, pois o espaço “foi de tal forma desvirtuado e descaracterizado que perdeu as características patrimoniais e culturais anteriormente valorizadas”, adiantou o então secretário de Estado da Cultura, Jorge Barreto Xavier, ao Diário de Notícias nesse mesmo ano.
João Tavares também considera que “a CMC podia aproveitar esse espaço”, justificando que o mesmo está cheio de potencial e pode dar lugar a atividades culturais que acabariam por atrair mais movimento às galerias. Entre as propostas sugeridas por alguns dos entrevistados, surgiram “um ponto de apresentações de livros”, “exposições de arte”, “uma bilheteria central para os espaços turísticos da Baixa” e, ainda, um espaço para “experiências musicais”, na medida em que “o espaço até tem boa acústica”, comentou o dono do Sofia Bares.
De farmácia a alojamento local
A rua Ferreira Borges, na Baixa de Coimbra, dá lugar a todo tipo de negócios. Ao longo dos anos muitos deles desapareceram, novas lojas abriram e outros mudaram para se adaptarem ao avanço dos tempos. A Farmácia Nazaré está instalada na movimentada rua há já 200 anos. No último ano, deixou de cumprir a função de farmácia para albergar um alojamento local que manteve a história original do edifício.
“Acho que, no fundo, o que importa é mantermos as memórias e as vivências de uma cidade” – Esmeralda Sena
Esmeralda Sena, umas das proprietárias do estabelecimento, inaugurou a Pharmacia Ghuesthouse em julho de 2021 mas, antes disso, a farmácia terá passado por vários proprietários, dos quais o seu marido foi o último. A empreendedora comentou que “a farmácia Nazaré é das mais antigas e representativas de Coimbra”, e por isso ressalta como todas as pessoas que viveram na Baixa de Coimbra se recordam do estabelecimento, alegando não ser justo “apagar essas memórias”.
Desta forma, ao manter a história, o alojamento local “marca a diferença”, já que, segundo explica Esmeralda Sena, “muitos dos clientes que chegam a hospedar-se no local são atraídos pelo espaço”. Acrescentou com alguma surpresa que, inclusive, “já houve pessoas que visitaram o espaço por serem farmacêuticos”.
“O rés de chão e o primeiro andar, local onde funcionava a farmácia e o escritório, respetivamente, estavam num estado muito degradado”, explicou Esmeralda Sena, que destacou como, apesar de tudo, o único elemento alterado foi o chão. A sócia apurou que tudo foi limpo e restaurado e salientou o trabalho de recuperação do teto, para o qual teve de contratar uma profissional. “Foi o que custou mais dinheiro e demorou mais tempo, pois o processo demorou quase um ano”, revela a proprietária.
Os móveis originais fazem parte da recepção do alojamento, depois de limpos, agora estão ocupados com os antigos frascos da farmácia que em tempos estavam guardados num armazém. Outros elementos originais da farmácia estão colocados em algumas das habitações como parte da mobília, assim como também “se manteve a chaminé, as janelas e os azulejos originais do edifício”.
Apesar de tentar manter todo o espaço fiel ao seu estado original, Esmeralda aclarou que a alteração que “mais custou” foi a escada original. A proprietária informou que, segundo as autoridades, a estrutura inicial não era considerada segura em caso de incêndio, e por isso tiveram que desenvolver uma solução para manter as escadas originais.
“Em edifícios deste género, (as autoridades) deviam ser mais condescendentes com este tipo de medidas porque, se queremos manter o património, nem sempre o podemos adequar a certas normas”.
– Esmeralda Sena
A proprietária confessou que todo o projeto foi “privado e particular”, na medida em que “tentou-se bater algumas portas”, mas não obteve resposta. Portanto, avançou com o projeto sem nenhum tipo de ajuda, pois para ela “era algo muito pessoal”. Esmeralda Sena alegou não ser "subsídio dependente”, e salientou o facto dos próprios empreendedores terem de procurar pelas entidades, sem saber onde se encontram os subsídios e as ajudas.