Coimbra é uma lição de feminismo e tradição

O fado é das maiores expressões da cultura portuguesa e Coimbra tem um forte papel no que à música diz respeito. Falar de Coimbra é falar da Universidade, dos seus estudantes e das suas tradições.

Há muito tempo que os estudantes se servem do fado para conquistar as donzelas ou cantar a saudade da cidade que hão de deixar.

No entanto, a Canção de Coimbra tem sido vedada à participação feminina e só recentemente é que vemos (e ouvimos) as guitarras e as violas a acompanhar a voz da mulher.

Desde muito nova que Joana Carvalho se interessa por música e conta com formação musical de mais de 10 anos e é na Canção de Coimbra que tem dado cartas.

O gosto especial pelo fado sempre existiu enquanto ouvinte, mas, como intérprete, é recente.

Joana Carvalho interpreta "Menino d'Oiro",
um original de Zeca Afonso.

A intenção já existia há algum tempo, mas em novembro de 2022 decidiu avançar com a paixão para a frente e inscreveu-se na Escola de Música da Secção de Fado da Associação Académica de Coimbra (SF/AAC) que lhe tem permitido “aprofundar os conhecimentos e o gosto por ouvir este género tão distintivo” que é a Canção de Coimbra.

“Existe um mito perpetuado de que as mulheres não podem cantar a canção de Coimbra”

Numa sociedade tendencialmente machista e patriarcal, também o fado sofre com preconceitos associados a quem o interpreta.

A Canção de Coimbra vai além do fado que conhecemos das serenatas. O folclore local, que as tricanas do Mondego cantavam enquanto lavavam a roupa no rio, tem um grande peso na inspiração das canções do fado.

Se não fossem as mulheres, a Canção de Coimbra que ecoa nas serenatas e que integra a identidade cultural da cidade e da academia não tinha a mesma expressão e pode-nos levar a questionar se alguma vez teria surgido.

Em alturas da história da SF/AAC, houve momentos de carência de cantores, pelo que Joana considera que “se houvesse uma consciência de que isto [cantar fado] é uma coisa possível para as mulheres, essa carência não se tinha sentido tanto”.

Atualmente, a secção cultural da AAC está num momento de inversão ao ter muito mais cantores em contraste com instrumentistas.

A abertura da Canção de Coimbra a todos, ou seja, o alargamento às mulheres, pode permitir que a falta de elementos, na interpretação ou no instrumental, possa ser combatida.

Para Joana é importante haver evolução na tradição, algo “que já devia ter havido” para não a cristalizar no tempo e torná-la estagnada e obsoleta.

“Da estagnação vem a irrelevância e a perda de sentido e de profundidade daquilo que é a Canção de Coimbra”, remata.

“Não preciso de nascer ensinada. É para isso que existe uma escola”

Há quem diga que as mulheres podem cantar fado, desde que cantem bem.

Se, por um lado, Joana concorda que deve haver qualidade na interpretação, por outro, considera errado que se exija às pessoas, independentemente do seu género, que nasçam a saber cantar.

O talento não basta, o processo de aprendizagem é importante.

Joana acredita que “a pouco e pouco vai-se normalizando” a presença feminina no fado e que os comentários depreciativos sobre este assunto são coisas com as quais se aprende “a lidar e a desconstruir”.

Histórico será o dia em que uma mulher se apresentar numa Serenata Monumental da Queima das Fitas de Coimbra.

Este é o momento alto anual da Canção de Coimbra e desde o seu início que se restringe aos homens, numa academia em que a maioria dos alunos são mulheres.

O fado, que é de todos os estudantes, e até muitas vezes apelidado de “fado académico”, nunca foi interpretado por uma mulher nas serenatas das festas académicas de Coimbra.

Cantar em maio, após os doze toques da Cabra, é o grande sonho de Joana.

Embora com um público e simbolismo substancialmente mais pequenos,  houve dois grandes momentos em que Joana e a suas colegas da Escola de Música puderam mostrar a sua voz.

O primeiro, a 11 de abril de 2023, no Arraial da SF/AAC, que decorreu nos jardins da Associação Académica de Coimbra, onde considera que conseguiram mostrar a sua “força e expressividade enquanto alunas”.

O segundo, a 26 de maio, na Queima das Fitas, quando o Grupo de Fados e Guitarradas da SF/AAC subiu ao palco principal. Desta atuação, todas receberam “louvores e críticas bastante positivas” sobre o seu desempenho.

Além destes momentos, Joana e as colegas vão tendo pequenas atuações pontuais pela SF/AAC, mas que valorizam e sabem a conquista.

Joana não esconde que gostava de ter o seu próprio grupo, mas, por enquanto, “estar nas aulas, ouvir as colegas cantar, ter a oportunidade de ouvir a guitarra portuguesa a tocar, a treinar acordes” para depois poder cantar ainda é suficiente e enche-lhe a alma de emoção.

A criança que tinha o “bichinho” de se tornar uma cantora de renome cresceu e, nos dias de hoje, sabe que é difícil alguém conseguir viver exclusivamente da sua arte dada a conjetura cultural do país, “as vicissitudes da vida e vendo que uma pessoa precisa de pôr pão na mesa” .

Licenciada em Jornalismo e Comunicação pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, garante que é jornalismo que quer exercer profissionalmente, mas não descarta que, um dia, possa viver da música.

“O futuro é uma incógnita, é incerto”, diz entre risos.

A Canção de Coimbra enfrenta um problema: o afastamento dos estudantes.

O principal contacto que os estudantes têm com a Canção de Coimbra é na Serenata Monumental da Queima das Fitas, em maio, e na Serenata da Festa das Latas e Imposição de Insígnias, em outubro. Fora estes dois momentos anuais, ambos inseridos em grandes festas académicas, existe pouca relação direta.

Momentos tão importantes e solenes no contexto da academia coimbrã perdem significado por conta do afastamento dos estudantes também devido à sua não evolução. No entendimento de Joana, “a tradição tem-se vindo a alienar da comunidade estudantil”. O afastamento também se justifica com o fechamento da tradição sobre si própria.

Para Joana, o afastamento pode ser combatido se houver uma abertura a novas vozes que queiram pensar a tradição de forma diferente sem que a ligação ao passado se desfaça só porque existem novas formas de ver a tradição e de entender a conjetura atual, sublinha.

As sociedades evoluem e, sem perder a sua génese, as tradições devem acompanhar esses desenvolvimentos sob risco de não haver quem se identifique com elas, o que conduz a um único destino: o seu fim. 

O fado não é diferente. Cabe à sociedade portuguesa, em específico à academia coimbrã, garantir a manutenção deste património imaterial e isso pode implicar adaptá-lo à nova realidade. Abri-lo a novas vozes, a novas sonoridades não o faz perder a matriz, mas pode-o aproximar da comunidade e fazê-lo mostrar-se atual e moderno.