Litoral Alentejano

Cortiça sem medos

Um pouco antes da famosa Costa Vicentina, mas ainda no Litoral Alentejano, os montados da zona de Santiago do Cacém oferecem as características ideais para a tiragem de cortiça de qualidade. O covid-19 e o estado em que vivemos não impediu que esta prática centenária tomasse lugar, não fosse esta uma das principais fontes de rendimento de quem vive neste cantinho. É assim que se inicia mais uma temporada na Herdade de Vale Besteiros, onde a segurança física é o principal, nada se podendo fazer contra o vírus que combatemos atualmente.

Começa a temporada


O dia começa cedo, às oito da manhã. O rancho conta com 8 tiradores de cortiça (para facilitar, são apelidados de “machados”), dois molheiros (para colocarem a cortiça tirada dentro do reboque), um empilhador de reboque, um tratorista (o patrão), um empilhador, uma taqueira e uma marcadora. De machados na mão, previamente amolados para que não vacilem no confronto contra o sobreiro, os tiradores começam a desbastar o mato: procuram o número que fora deixado há 10 anos atrás, quando a cortiça foi tirada pela última vez.

Para que nada fique por dizer, será, talvez, melhor começar por explicar o que é e como funciona este “jogo”, como apelida o patrão, Francisco de Aragão, na brincadeira. A cortiça é tirada dos sobreiros (comummente, “chaparros”) de década em década para que esta tenha uma qualidade mais elevada e, assim, valha mais. Para que não haja confusão no campo, cada ano recebe um número que se repete de 10 em 10 anos: neste ano, 2021, as árvores receberam o número um e daqui a uma década, em 2031, receberão um um também (o marcador é responsável por este trabalho).

Há vários tipos de cortiça: boia, delgada, amadia e tacos. A boia (ou virgem) é a primeira cortiça que a árvore produz e, quando esta é retirada, o sobreiro apresenta uma cor avermelhada, parece que tem vergonha da sua nudez.

A cortiça amadia é a que a árvore produz depois da primeira tiragem, sendo que começa a apresentar uma casca alaranjada. Mesmo após os 10 anos, há árvores que não conseguem chegar a produzir uma cortiça grossa o suficiente para deleitar o patrão, sendo este género apelidado de “delgada” – este ano, Francisco decidiu deixar a cortiça delgada para a temporada que vem.

Os tacos são os pedaços pequenos de cortiça que não têm tamanho suficiente para fazer parte da pilha – os taqueiros são responsáveis pela sua recolha.

Cada tipo de cortiça tem um preço diferente, que muda de ano a ano, sendo a amadia a mais valiosa e a boia a menos.

Trabalho humano

Com todas as tarefas distribuídas, o trabalho inicia-se sem grandes problemas. Os machados escolhem as árvores e atiram-se à tarefa com unhas e dentes, não parece difícil: faz-se um corte vertical no pé do sobreiro, um redondo ou outro nos locais necessários (corte à volta da árvore) e, com ajuda dos machados, arranca-se a cortiça da casca. Este trabalho é, no entanto, de tamanho esforço e perigo que não é raro haver casos de perda de dedos e até de orelhas.

O rancho conta com um elemento novo, o Ricardo. Com apenas 19 anos, o “puto”, como lhe chamam os machados veteranos, aprende as técnicas com paciência, trocando de parceiro todos os dias para “deixar descansar” os instrutores e assimilar o maior número de dicas. Mesmo demonstrando ter jeito para a arte, no primeiro dia, Ricardo acabou por apanhar um pequeno susto: cortou-se no machado. Com o polegar lacerado, o rapaz estancou o sangue e continuou a trabalhar. No dia seguinte, à tarde, o susto foi um pouco maior quando o novo alvo do machado foi a orelha. Apenas com um corte, Ricardo colocou um penso e manteve o ritmo, apenas não se conseguiu livrar do gozo geral dos companheiros, todos diziam que a orelha estava quase a cair e que mais valia agrafá-la.

A experiência não é, no entanto, sinónimo de segurança, isto porque um dos veteranos conseguiu cortar a carteira de um colega ao cair de uma escada. Ao tentar retirar uma prancha de cortiça, o “Minis” caiu da escada e o machado saiu a voar: acabou por passar de raspão nas calças de um colega, rasgando a carteira que o triste alvo levava no bolso.

Talvez por ser o mais experiente, ou simplesmente o mais responsável, Carlos Ventura comanda o rancho e tenta impor a ordem para que tudo corra bem (quem sabe, talvez sem Ventura muitas mais carteiras estariam em perigo). Com o cargo de manageiro cravado no peito e um machado que verga qualquer sobreiro, é Ventura quem está responsável pelos tiradores e quem zela pela qualidade do trabalho.

Tirador de cortiça há mais de 17 anos, Carlos Ventura sabe ver quando a cortiça é delgada sem ter de lhe fazer um teste primeiro, é capaz de olhar para um sobreiro e criar um mapa mental sobre que cortes deverão fazer as pranchas sair sem problemas e, talvez o mais importante, sente que ainda não sabe tirar cortiça. O machado é um instrumento perigoso e o sobreiro é uma árvore delicada, uma confiança excessiva é mais prejudicial do que se poderá pensar. “Há uns tiradores que aprendem num ano e outros que nem em 10 aprendem. Eu ainda não sei tirar”, comenta.

Dificuldades

A qualidade da cortiça não se baseia apenas no básico, os tais 10 anos e a qualidade do tirador, também esta é afetada por pragas e doenças. Os machados precisam de saber lidar com percalços de maneira a assegurar a década seguinte.

Os problemas mais comuns que se encontram são a cobrilha e o empolamento. A cobrilha é uma lagarta que se alimenta do sobreiro, estragando a cortiça e dificultando a sua tiragem.

O empolamento é causado pela própria árvore que, ao criar demasiada seiva, acaba por fazer levantar a casca e, assim, levantando a cortiça (isto cria humidade, o que não é bom para o sobreiro).

Algo pouco comum é a cortiça ardida, ou seja, cortiça que fica demasiado tempo na árvore. Estas acabam por se tornar escuras e secas, perdendo qualidade.

O pior, talvez, são as formigas. Estas guerreiras zangadas usam capacetes vermelhos e levantam o rabo quando estão zangadas, não é difícil reparar nelas. Quando ficam mesmo zangadas, mordem o braço de quem lhes estraga a casa e a dor, mesmo que de pouca duração, dificulta o trabalho e a concentração.

As dificuldades não são apenas experienciadas na tiragem, todo o mato acaba por ser um valente inimigo que tenta resistir aos avanços do Homem. Quem anda pelo campo à espreita da próxima boa prancha está constantemente numa luta contra silvas, tojeiros e alegra-cão, plantas que agarram e não largam. Qualquer trabalhador tem uma caraterística comum: braços e pernas mais cobertos de feridas do que de pele. “Em vez de sair daqui bronzeado, saio sem pele", comenta um dos molheiros.

Nem tudo é mau


Por vezes, atinge-se o jackpot. Há árvores tão grandes que enchem um reboque, que utilizam todos os machados e que roubam as forças todas aos molheiros. Os bons gigantes, centenários que já viram de tudo, descansam e oferecem o que têm aos que lhes dão atenção. As pranchas de cortiça pesam mais de 30 quilos e têm de ser postas em cima do reboque, não é tarefa que gere muita satisfação aos pobres molheiros que, ao ver um destes monstros, até tremem. “Desgraça para nós, bom para o patrão”.

Há anos e anos para tirar a cortiça. Segundo o manageiro, “este ano está bom pra’ limpar árvores velhas porque a cortiça está a sair bem, choveu muito no princípio do verão”. O patrão também está contente, viu a grande maioria dos sobreiros velhos ser limpa, quase garantindo uma pilha maior na década seguinte.

            “A melhor altura para tirar a cortiça depende dos anos, nunca é igual. Depende da zona, do tempo, de muita coisa. Por exemplo, este ano tirámos na altura ideal porque vieram aqueles calorões e a chuva: foi tão bom que conseguimos tirar cortiça com 140 anos”, comenta Francisco de Aragão.

Uma das grandes revelações foi a tiragem de um "pequeno" pedaço de cortiça com 140 anos, um monstro tão pesado quanto uma prancha de dois metros. A cor avermelhada da árvore não deixa dúvidas, esta tem de facto vergonha da sua vulnerabilidade. O chaparro conseguiu agarrar-se ao pedacinho durante anos, pois, segundo Carlos Ventura, “não deve ter querido sair bem e, depois, houve uns malandros que não a quiseram tirar porque dava muito trabalho”. Um dos machados, mais conhecido por Aldrabas, comenta que a árvore “tem uns 200 anos, ainda é uma menina”.

A estética também é importante


Perto da casa da Herdade, o sr. António Patrício é o verdadeiro veterano. Carregado de conhecimentos sobre como uma prancha deve ser e um sentido apurado para a estética, é ele a última fronteira entre o comprador e o produtor. Depende do sr. António tornar a cortiça apresentável e, assim, garantir ao patrão um bom preço. “É importante empilhar para mostrar a qualidade da cortiça e deixá-la boa para o comprador, os olhos são a primeira coisa a comer".

Tudo tem uma técnica: coloca-se à frente as pranchas mais bonitas e as menos “jeitosas” ficam no meio. Para tornar cada prancha o mais bonita possível, sem qualquer marca da violência do machado, o sr. António acerta as bordas e limpa-as.

            A construção da pilha não é feita sem um plano, vem do passado e mantém-se até aos dias de hoje. “A técnica é lotear a cortiça, ou seja, alterná-la entre grossa e delgada para ela não se ver toda grossa só num sítio e fina só noutro”, afirma, “temos de fazer as beiradas primeiro, ou seja, a parte de fora, e ir enchendo”. Enquanto constrói pacientemente a obra, o empilhador vai escolhendo a cortiça de melhor qualidade para colocar, no final, na frente da pilha, o chamado “cavalo”, para, assim, criar equilíbrio e dar uma estética diferente. O veterano conta ainda que há compradores que fazem provas de pilha, ou seja, retiram pedaços no topo para ver o estado da cortiça no meio da pilha.

Claramente cheio de orgulho do seu trabalho, e com razão, o sr. António conta que se lembra de fazer pilhas para o pai do atual patrão, há mais de 30 anos, com mais de 50 metros de comprimento, 10 de largura e dois de altura. Antigamente, antes de partilhas, a Herdade produzia o dobro, por vezes o triplo, sendo criadas verdadeiras mansões feitas de cortiça.

Hora de pousar o machado

Às cinco da tarde, o som dos machados contra os sobreiros cessa. Alternando, cada um dos trabalhadores deve pagar uma grade de cervejas para deleito dos companheiros - a verdade é que, depois de trabalhar debaixo de um calor de quase 40 graus, não há nada melhor do que uma cerveja bem fresca.

No meio de piadas, comentários, limpeza de machados e olhares receosos direcionados às roupas (nunca se sabe se estará lá uma carraça ou uma formiga à procura de um bom sítio para morder), acaba-se mais um dia. Na manhã seguinte, às oito da manhã, tudo se repete. Após se acabar a tiragem na Herdade do Barranco, o rancho passará para a próxima, apenas terminando no final de agosto.

É impossível usar máscaras ou desinfetante neste ambiente, a aridez do trabalho não o permite. A verdade é que a confiança uns nos outros é fundamental. O facto de que todos moram na mesma zona e que ninguém se dá com estranhos, é um círculo fechado, faz com que a preocupação que se vive em grandes cidades não se faça sentir. Este bocadinho no Litoral Alentejano, onde todos moram com um pé na serra e outro na praia, é uma bolha onde o Coronavírus dificilmente entra – um paraíso.

Francisco de Aragão
Carlos Ventura
António Patrício
“Chico Escuro”
“Aldrabas”
João “Cinco Minis”
Ricardo “Puto”
Carlos Quintas
Carlos “das penas”
Eduardo Pacheco
Raquel Nunes
Teresa Gomes
"Márinho"

Herdade do Barranco