Dragagens do rio Sado

A história de uma controvérsia ambiental

Fotografia retirada do site https://www.portodesetubal.pt

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O Porto de Setúbal é o quarto maior porto de Portugal Continental e há anos que é considerado um dos mais importantes pontos de comércio marítimo a nível nacional. A sua localização no estuário do rio Sado é de fácil acesso aos navios que trazem mercadoria, e permitiram o crescimento do comércio internacional na região. Mas esta localização ideal tem um problema: situa-se ao lado de uma das mais importantes reservas naturais do país.

Em outubro de 1980, o Decreto-Lei n.º 430/80 leva à criação da Reserva Natural do Estuário do Sado. Neste lia-se que “O estuário do Sado, não obstante estar afectado pela agressividade de poluentes de vária ordem, apresenta um elevado valor ecológico, científico e económico que urge defender. Para iniciar uma gestão racional do estuário é, pois, indispensável, para já, evitar alterações em determinadas áreas que possam vir a comprometer irreversivelmente as suas incontestáveis potencialidades biológicas, tendo em vista o futuro da região e a defesa e valorização de aspectos económicos, sociais e culturais ligados à ecologia do estuário.”

O Estuário do Sado é o habitat de diversas espécies marinhas e terrestres. Existem mais de 200 espécies de aves, o que traz vários observadores de aves à região, entre elas o mergulhão-pequeno, a garça-real, a águia-sapeira, o pernilongo e o flamingo.

No rio pode-se encontrar todo o tipo de animais que é o caso de bivalves como berbigão e navalha, peixes como o salmonete, o linguado, a dourada e o charroco, cefalópodes como o polvo, o choco e a lula, e crustáceos, como o caranguejo, a camarinha e amêijoa. A atividade da pesca na região é muito dependente destas espécies.

Ao nível da flora, o Sado possuí várias pradarias marítimas, ou seja, habitats onde crescem plantas aquáticas. Estas tendem a localizar-se em zonas costeiras e são a fonte de alimento e abrigo de diversas espécies de animais marítimos.

O golfinho-roaz ou roaz-corvineiro é a espécie de golfinhos famosos por viverem no Estuário do Sado. Existem cerca de 30 golfinhos a habitarem no rio e são um dos três grupos que residem permanentemente em espaço marítimo europeu. Estes mamíferos são uma das principais atrações turísticas da região, uma vez que podem ser avistados frequentemente.

Fotografia retirada de Setúbal em Bom Ambiente.

Fotografia retirada de Setúbal em Bom Ambiente.

"(...) foi analisada com particular cuidado a potencial afetação da comunidade de golfinhos-roazes do estuário do Sado, tendo-se concluído que o ruído é o principal fator de perturbação desta espécie. As atividades de obra (dragagens e deposição de dragados) acarretam impactes negativos sobre este grupo faunístico, embora temporários, reversíveis e passíveis de minimização, tendo sido globalmente considerados como significativos."

Excerto do Estudo de Impacte Ambiental do Projeto de Melhoria da Acessibilidade Marítima ao Porto de Setúbal

O projeto de Melhoria das Acessibilidades Marítimas ao Porto de Setúbal foi criado em 2017 e é gerido pela APSS - Administração dos Portos de Setúbal e Sesimbra. Este inseria-se na Estratégia para o Aumento da Competitividade da Rede de Portos Comerciais do Continente – Horizonte 2016 da Resolução do Conselho de Ministros n.º 175/2017. A estratégia tinha em vista criar condições para navios de maiores dimensões nos portos comerciais portugueses.

 De acordo com a Resolução do Conselho de Ministros, nos últimos anos tinha havido uma “tendência, por um lado, para o aumento de escalas de navios de maiores dimensões e, por outro, para a diminuição dos navios de  menores dimensões, colocando assim um maior desafio aos portos comerciais do continente para criar condições para a receção de navios de maiores dimensões, salvaguardando as condições de segurança e navegabilidade dos restantes navios e embarcações e permitindo, paralelamente, o incremento de outras atividades.”

Mapa do Plano de Dragagens. Retirado de APSS.

Mapa do Plano de Dragagens. Retirado de APSS.

O processo de dragagem consiste na remoção de areia e sedimentos do fundo do estuário, criando assim um canal profundo o suficiente para navios de grandes dimensões poderem passar. Este canal começa na região da costa de Sesimbra e contorna a costa norte da península de Troia até chegar ao porto de Setúbal. As areias removidas são depois depositadas noutras partes do rio.

Embora já tivessem havido dragagens no rio Sado, estas nunca tinham sido tão fundas e intensivas – o que gerou uma preocupação quanto à forma como a vida marinha ia reagir.

A APSS fez um Estudo de Impacto Ambiental que revelou que a realização das dragagens teria impactes negativos em vários dos parâmetros analisados. Todos eles foram considerados potencialmente reversíveis ou minimizáveis, o que levou a uma Declaração de Impacte Ambiental favorável à realização das dragagens. Esta decisão foi recebida com fortes críticas levando ao início de uma polémica que se estenderia durante os próximos anos.

Retirado de O Setubalense

Retirado de O Setubalense

Após o projeto ter sido aprovado surgiram ondas de indignação tanto da população como de várias entidades e organizações. Os partidos Bloco de Esquerda, PAN e PEV vocalizaram as suas críticas ao projeto de Melhoria das Acessibilidades Marítimas ao Porto de Setúbal, assim como várias associações ambientais como Zero, Quercus, Liga para a Proteção da Natureza, Clube da Arrábida e Ocean Alive. Foram também criadas novas associações para defender esta causa como foi o caso da SOS Sado.

Durante 2018 e 2019 foram várias as manifestações organizadas por estas associações que mobilizaram em alguns casos até mil pessoas. Chegou a haver, em dezembro de 2019, uma manifestação em São Bento, à porta da assembleia, enquanto a suspensão dos trabalhos estava a ser discutida.

Várias providências cautelares foram interpostas por algumas destas associações assim como pedidos de novos estudos e reavaliação dos perigos ambientais.

A um mês do início das dragagens, a SOS Sado chegou a pedir aos setubalenses que colocassem os seus barcos em frente à draga para que esta não possa avançar nos trabalhos.

Do ponto de vista destas associações e da parte da população que levantou objeções às dragagens, o governo e a APSS estavam a colocar a economia acima das espécies de animais e plantas do estuário, da pesca e do turismo da região. Acreditava-se que o Estudo de Impacto Ambiental não tinha sido suficiente para averiguar os perigos ambientais, e outros estudos independentes começavam a surgir e indicavam que a deposição dos dragados podia pôr em risco espécies como o choco, o linguado e a raia. Temia-se também que os golfinhos-roazes, queridos da população, fossem afastados pelo ruído das dragas.

Fotografia retirada de Zero.ong

Fotografia retirada de Zero.ong

"Os estuários são os ecossistemas mais produtivos do planeta e são muito importantes do ponto de vista da própria atividade económica do mar. Os estuários não são vocacionados para serem portos de águas fundas" contou ao jornal Diário de Notícias Francisco Ferreira, o presidente da associação ambientalista Zero.

Apesar das constantes manifestações e críticas, em dezembro de 2019 as dragagens do rio Sado começaram. Nenhuma das providências cautelares das associações obteve decisão favorável e tanto o governo como o supremo tribunal tomaram uma decisão favorável em relação às dragagens. Ainda assim, as associações ambientalistas continuaram a lutar para que estas fossem suspensas.

Até ao momento, as consequências das dragagens são pouco claras. Um mês após o início das obras, deram à costa várias gaivotas e golfinhos mortos. Embora não fosse possível estabelecer uma relação causa-efeito, a SOS Sado considerou que havia uma possibilidade de a causa destas mortes ser envenenamento por parte dos sedimentos tóxicos libertados pelas dragagens.

Em janeiro de 2021, “lamas cinzentas” soterraram uma pradaria marinha na praia de Eurominas, em Setúbal. A organização Ocean Alive tomou conhecimento de que estas tiveram origem no rebentamento de uma parede do tanque de contenção de águas de dragagem. Foi garantido pelo Terminal Teporset, de onde estes sedimentos tinham vindo, que estes não passavam de areias e argilas provenientes do próprio leito do rio Sado. No entanto, esta é uma zona de viveiro de ostras que a SOS Sado receia ter sido contaminada.

Praia de Eurominas coberta por sedimentos das dragagens. Fotografia retirada de SOS Sado.

Praia de Eurominas coberta por sedimentos das dragagens. Fotografia retirada de SOS Sado.

A fase inicial das dragagens foi concluída no fim de 2020. Em abril de 2021, a associação Clube da Arrábida revelou ter retirado a ação judicial que tinha intentado contra o projeto. “A decisão de desistência da ação principal, agora tomada, teve por fundamento a constatação, óbvia, de que pouco ou nada vale continuar a demanda jurídica, já que os verdadeiros efeitos imediatos que se pretendia evitar são já uma realidade irreversível”, comunicou o Clube da Arrábida.