Em tempos de Covid-19
a favela é pela favela

As comunidades no Rio de Janeiro se unem para enfrentar os impactos da pandemia diante da omissão do poder público

Quando você imagina a pandemia do novo coronavírus numa favela do Rio de Janeiro, o que vê? A epidemia avança furiosamente nestas comunidades e encontra ainda a falta d'água e a fome. A transmissão comunitária está absolutamente descontrolada e atinge sobretudo as camadas menos favorecidas da sociedade carioca. Nas favelas vivem os mais vulneráveis.

O cenário é bem mais preocupante do que indicam os números oficiais, e especialistas citam um problema mais grave do que a subnotificação: o ambiente propício para a proliferação rápida do vírus, agravado em áreas com maior circulação de pessoas em espaços reduzidos. A situação de muitas famílias desse território é ainda mais grave com a perda parcial ou total de renda.

As favelas densamente povoadas do Rio de Janeiro representam cerca de 22% dos 6,7 milhões de habitantes da cidade, de acordo com o último censo nacional. A falta de dinheiro e alimentos já atinge em cheio as famílias que vivem na informalidade.

Pesquisa recente do Data Favela mostrou que 72% das pessoas nessas comunidades não têm poupança para manter nem por uma semana o seu baixo padrão de vida. Casas repletas de crianças que deixaram de ir às escolas onde recebiam a merenda —sua principal refeição do dia— são a nova realidade em favelas.É lá que vive a maior parte dos cerca de 13,5 milhões de brasileiros na extrema pobreza, que passam o mês com menos de R$ 145 — obtidos em trabalhos precários. Pouco mais de 20 euros.

"Existem 763 favelas no Rio de Janeiro, com cerca de dois milhões de moradores - a maioria vivendo em casas pequenas, pouco arejadas e com muita gente. As populações que moram nessas comunidades já têm uma prevalência grande de doenças de base, como tuberculose, hipertensão, diabetes; então, o impacto nessa população pode ser muito mais grave, a tragédia pode ser muito grande." Alerta o professor do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Mário Dal Poz.

"Está faltando tudo em casa. Sem trabalho, como a gente vai comprar?”, disse A. S. à Deutsche Welle. “Trabalhava como doméstica. Agora estou parada, nenhum condomínio deixa a gente entrar, ainda mais quando sabem que a gente vive em favela”

No Beco do Índio, pequena comunidade no Recreio (zona oeste), uma mulher que não quis ser identificada, de 31 anos, está apavorada desde que começou a sentir febre alta, tosse, dores no corpo e dificuldade para respirar. Ela foi ao posto de saúde mas, sem testes para o coronavírus, recomendaram apenas isolamento.

A empresa de call center onde ela é atendente insiste que ela pegue dois ónibus e leve o atestado médico pessoalmente até o local, diz, onde 150 funcionários continuam trabalhando numa sala fechada e dividindo computadores e microfones sem limpeza adequada.

"Essa quarentena é muito seletiva. Quem consegue ficar em casa recebendo, ok. Mas quem depende do dinheiro do dia para comer precisa sair. Não tem nenhuma fala do poder público direcionada à favela, quando o vírus chega é como um dominó"

"Muitas orientações têm sido dadas como se os direitos fossem iguais para todo mundo. Como se todos tivessem água corrente em casa, como se álcool em gel fosse uma realidade factível para todas as pessoas, e não é bem assim", diz Isabela Souza, diretora do Observatório de Favelas.

O Observatório é uma organização da sociedade civil de pesquisa, consultoria e ação pública dedicada à produção do conhecimento e de proposições políticas sobre as favelas e fenómenos urbanos.

Nasceu em 2003 e tem sede no Complexo da Maré onde vivem cerca de 140 mil pessoas.

Sem plano do governo para favelas, moradores e organizações se uniram para controlar contágio e uma iniciativa que envolveu ativistas e pesquisadores lançou em maio o Plano de Ação Covid nas Favelas do Rio de Janeiro: uma catástrofe a ser evitada. Para coordenar e implementar as ações propostas, o grupo defendeu a instalação de um Gabinete de Crise de Atenção às Favelas, reunindo o governo do Rio de Janeiro em articulação com a Fundação Oswaldo Cruz, organizações comunitárias e universidades.

“A articulação dessa rede social-científica possibilitou produzir e entregar para a gestão pública essa contribuição central para o enfrentamento da pandemia em nosso estado”, diz o professor Richarlls Martins, do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos da Universidade Federal do Rio de Janeiro:

Plano de Ações foi recebido pelo governo do Rio de Janeiro durante reunião virtual com pesquisadores e lideranças comunitárias.

Plano de Ações foi recebido pelo governo do Rio de Janeiro durante reunião virtual com pesquisadores e lideranças comunitárias.



Acesse aqui o PLANO DE AÇÕES PARA O ENFRENTAMENTO DA COVID-19 NAS FAVELAS

Trabalho no âmbito da unidade curricular de Jornalismo Multimédia na Universidade de Coimbra , docente Inês Amaral. Maio 2020.

Agradecimento especial à pesquisadora Ligia Bahia.

Fontes de informação:Rio on watch; Frente de Mobilização da Maré; Voz das comunidades; Fala Manguinhos; Ponte jornalismo; Fundação Oswaldo Cruz; Associação Brasileira de Saúde Coletiva; Folha de São Paulo, Coletivo Papo Reto e Perifa Connect.
Fotografias (por ordem de apresentação):Marcos Maluf; Fábio Bento; Ricardo Moraes; Bruno Santos; Wasawat Lukharang; Isabela Souza; Pilar Olivares; Fábio Bento e Fábio Motta. 
Vídeos (por ordem de apresentação): Secretaria de Urbanismo da Prefeitura do Rio de Janeiro. Favela da Rocinha (gravado por Georg Fietz); depoimento de Richarlls Martins (gravado pelo próprio).
Mapa: Observatório de Favelas.