FUTEBOL DISTRITAL: PAIXÃO, MAGIA E PRECONCEITOS

Grande Reportagem

A paixão pelo jogo

Enquanto desporto rei, o futebol desde sempre teve um impacto significativo na sociedade, com a sua capacidade de mover massas e muitas vezes parar o mundo. Desde o século XIX para cá, a modalidade evoluiu com o passar dos anos e, de facto, muita coisa mudou, o desporto foi-se modernizando aos poucos e, hoje em dia, o futebol é um mundo completamente diferente do que era nos seus primeiros tempos de existência. Porém, mesmo com tantas mudanças que foram surgindo ao longo dos anos, desde as equipas, clubes, ligas, estádios e até mesmo os próprios equipamentos de jogo, houve algo que prevaleceu até aos dias de hoje: a paixão. Alguns mais, outros menos, todos aqueles que estão minimamente ligados ao futebol têm uma ligação especial com o desporto rei e fazem dele um pouco, ou até bastante, das suas vidas.

Quando se fala de paixão pelo jogo, engloba-se tudo aquilo que faz do futebol o desporto rei, dos adeptos que enchem os estádios semana após semana para apoiar o seu clube e muitas vezes criar uma atmosfera digna de aplausos, ou até mesmo em torneios de seleções como o mundial ou o europeu, onde adeptos de vários cantos do mundo se juntam num único país para apoiar a sua nação e criar uma magia única, misturando diversas culturas e nacionalidades. E claro, nada disto seria possível sem os próprios jogadores, que são, obviamente, um pilar fundamental para que o futebol seja a festa bonita que é, inspiram jovens, crianças e adultos e fazem as pessoas gostarem e identificarem-se com a modalidade. O impacto que muitos profissionais de futebol têm nos seus fãs e adeptos, faz com que o seu gosto e paixão pelo jogo em si nunca desapareça mas, pelo contrário, intensifique-se a cada dia que passa.

Futebol distrital: a realidade

No meio de toda esta magia do jogo, mesmo que a sua existência seja indiscutível, há uma parte deste mundo do futebol que, falando mais no contexto nacional, muitas vezes é esquecida, ou, pelo menos, marginalizada: o futebol distrital. O futebol distrital em Portugal é a base da pirâmide do futebol nacional e representa muito mais do que apenas competição desportiva , é paixão, tradição e comunidade. Organizado por 22 Associações Distritais e Regionais, como a AF Lisboa, AF Porto ou AF Coimbra, o futebol distrital é onde nascem muitos dos sonhos que podem chegar às ligas profissionais. Nestes campeonatos, os clubes disputam a 1.ª ou 2.ª Divisão Distrital, consoante a sua zona e desempenho, com a possibilidade de ascender ao Campeonato de Portugal, o quarto escalão nacional, antigo terceiro até ao aparecimento da Liga 3.

Apesar das dificuldades e limitações financeiras, muitos clubes têm histórias centenárias. O SC Vianense, por exemplo, é o clube mais antigo ainda em atividade em Portugal no contexto distrital, fundado em 1898. Os campos, por vezes pelados ou com relvados sintéticos básicos, são locais de resistência desportiva. Em muitas aldeias e vilas, são o centro da vida comunitária ao fim de semana. Os jogos são intensos, especialmente quando envolvem rivalidades locais que remontam a décadas. Os famosos “derbies distritais” mobilizam multidões e criam ambientes verdadeiramente apaixonantes, com muito barulho e emoção, apesar da pequena dimensão dos recintos.

É evidente que este contexto do desporto nunca poderia ter a mesma visibilidade que o futebol profissional tem, por se tratar de um contexto amador da modalidade, onde não há acesso a transmissões de jogos ou a informações em primeira mão. Porém, apesar desta pouca visibilidade, é, muitas vezes, no contexto do futebol distrital onde é possível encontrar as histórias mais bonitas, de jogadores, treinadores ou adeptos que, mesmo estando ligados a um contexto inferior da modalidade, sentem da mesma forma ou até com mais intensidade toda esta magia que o futebol proporciona.

Uma história em tantas outras

Uma destas histórias e um dos vários exemplos de paixão pelo jogo encontra-se em Coimbra, mais precisamente no Sporting Clube Ribeirense, clube local que disputa a 1ª divisão da AF Coimbra, equivalente à terceira divisão distrital, logo abaixo da Divisão de Honra (2ª divisão) e da Divisão de Elite (1ª divisão), que apenas entrou em funcionamento na época passada, substituindo a Divisão de Honra como divisão principal da AF Coimbra.

Manuel Silva, de 23 anos, é jogador da equipa de Ribeira de Frades, tendo já efetuado passagens em clubes locais da cidade dos estudantes, como Académica OAF, Académica SF, UC Eirense e Sanjoanense AC. “Para mim jogar futebol é ter a oportunidade de fazer uma das coisas que mais gosto, é fazer algo que acompanho desde sempre, sendo o desporto que mais gosto de seguir”. O jogador do SC Ribeirense descreve o futebol como algo “único” e “uma segunda família”, mas também como uma forma de adquirir aprendizagens para a vida. “O futebol permite-me fazer novas amizades, muitas dessas que ficam para a vida. É como se fosse uma segunda família, passamos várias horas juntos desde os jogos aos treinos. Penso que é também ter a oportunidade de evoluir a cada treino e a cada jogo, de adquirir competências que podemos levar para o resto da vida, como o compromisso e a disciplina”.

Ao longo do seu percurso, Manuel Silva viveu momentos que marcaram a sua trajetória até ao momento no futebol. Depois de ter feito formação na Académica OAF, UC Eirense e Académica SF, representou a última a nível sénior durante duas épocas, antes de se transferir na época passada para a Sanjoanense AC. Esta época, voltou a “mudar de ares” e, atualmente, encontra-se a representar o SC Ribeirense. Ao longo de todo este trajeto, Manuel assume ter vivido momentos que marcaram a sua passagem, até agora, pelo futebol, especialmente no futebol sénior.

“A minha estreia na equipa principal da Académica SF foi um momento muito marcante, depois do trabalho desenvolvido na equipa de sub 23. Acho que é o objetivo de qualquer jogador conseguir estrear-se pela equipa principal de um clube. Outro dos momentos foi quando representei a Sanjoanense, vinha de vários anos a jogar na Académica SF e fui recebido de braços abertos por um grande grupo, que tornou a minha adaptação muito fácil. Por fim, quero também destacar o meu regresso à competição esta época, em janeiro, após 2 meses parado, isto porque lesionei-me em outubro e a recuperação estava a ser feita no clube. Quando estava previsto que voltasse aos treinos sem limitações, ressenti a lesão, o que me deixou frustrado e a ter que fazer tratamentos numa clínica fora do clube. Foram momentos complicados, então o regresso à competição foi especial”.

Entre o Sonho da Ascensão e o gosto pelo jogo

Uma questão que também é muito levantada neste contexto do futebol distrital, é se os jogadores apenas jogam por mero gosto ou se pretendem atingir patamares mais altos, uma vez que é possível encontrar ambos os casos. Um fator muito importante para definir isso passa pela idade do jogador em questão, uma vez que quanto mais jovem for, maior é a probabilidade de ainda poder ascender a patamares superiores e a sua vontade para isso.

Ainda assim, existem casos no futebol únicos, como o de Jamie Vardy, que mesmo já estando a jogar em ligas nacionais, jogou futebol amador até aos 25 anos de idade, onde passou pela oitava, sétima e quinta divisões do futebol inglês. Com esta idade, transferiu-se para o Leicester City, na altura a competir no Championship, segunda divisão inglesa. Hoje, é provavelmente a maior figura de sempre do clube, foi campeão em 2016 na histórica conquista da Premier League do clube e, por mais que os anos passassem com muitos jogadores chave do plantel a sair, Vardy manteve-se sempre no clube com diversas oportunidades para ascender a um um contexto superior. Mais recentemente, o jogador anunciou a sua saída do Leicester no final desta última época, após doze anos a representar os “Foxes”, e é considerado uma autêntica lenda do clube inglês.

Outro caso que não deixa de ser surpreendente, este a nível nacional, é o caso de Jota Silva, jogador português que atualmente representa o Nottingham Forest de Nuno Espiríto Santo, clube da Premier League. Ainda há poucos anos, em 2019/2020, representava o Sporting Clube de Espinho, do campeonato distrital de Aveiro. Na mesma época, transferiu-se para o Leixões, da segunda liga, onde também viria a representar o Casa Pia por duas épocas. Na época 2022/2023, juntou-se ao Vitória SC, clube de bom nome em Portugal e, no início da última época, mudou-se para Inglaterra, onde está, então, a representar o Nottingham na melhor liga do mundo. É, portanto, uma grande história de superação, esta iniciada, precisamente, no futebol distrital português, que demonstra que com trabalho e dedicação tudo é possível, mesmo num curto espaço de cinco anos.

Sobre esta questão, Manuel Silva não vê sentido em jogar futebol sem a meta de chegar a patamares superiores, apesar das dificuldades que existem nesse sentido. “Eu sou sempre competitivo em qualquer equipa que esteja, entro com o objetivo de ganhar e aproveito cada jogo e cada treino para evoluir. Claro que também jogo por gosto, no entanto, na minha opinião, não faz sentido andar em algo “por andar”, por isso claro que sonho em ascender a patamares superiores. Sei que é muito complicado e há uma percentagem mínima de probabilidade de acontecer, no entanto, qualquer ascensão é sempre bem vista da minha parte. É continuar a trabalhar e a evoluir, depois logo se verá”.

Preconceito ou divergência?

Apesar do futebol distrital ser admirado por muitos, também há quem desvalorize ou não dê a devida importância a este patamar da modalidade, seja pelo facto de ser o contexto mais baixo a nível de escalões desportivos, ou pela qualidade do jogo ser bastante inferior àquela que todos estão habituados a ver no contexto do futebol profissional. Este fator faz com que seja necessário valorizar cada vez mais o futebol distrital no seu todo, uma vez que se trata de um contexto que pode potenciar bastantes talentos escondidos para o futebol profissional e para as grandes ligas, mesmo quando ninguém dê por nada de todos estes jogadores.

A partir daqui, surge o debate de se realmente este tipo de “preconceito” com os escalões distritais realmente existe ou não passa de uma pequena minoria que pensa desta forma.

Questionado sobre a existência deste “preconceito”, Manuel Silva não acredita que seja um motivo para gerar preocupação. “Atualmente, observamos alguns jogadores e treinadores que fazem os seus trajetos desde o futebol distrital até ao profissional, isso faz com que o futebol distrital, a meu ver, já seja visto com bons olhos”. O jogador do SC Ribeirense destaca também a importância de se perceber que o sucesso dos jogadores que competem neste contexto está, muitas vezes, dependente de fatores externos. “Temos vários exemplos de jogadores que, apesar de nunca terem chegado ao futebol profissional, têm qualidade para tal, por vezes é mesmo uma questão de oportunidade, de fatores externos e, obviamente, depois é necessário saber agarrar essa oportunidade”.

A tentativa de equiparação do futebol distrital ao profissional é outro fator a ter em conta. É unânime entre todos aqueles que acompanham futebol que é impossível estes dois contextos não terem diferenças significativas, só pelo facto de se tratar de profissionais e amadores, mas também pelo impacto que cada um gera na sociedade. Desde sempre, e mesmo sabendo de todas estas diferenças, todos aqueles que estão ligados ao contexto distrital, tentaram reduzir, ou pelo menos, tornar menos significativas essas divergências, de forma, também, a que o “preconceito” com o futebol distrital não existisse ou fosse reduzido.

Manuel reconhece que é impossível anular por completo essas diferenças. “Apesar das equipas que competem nos campeonatos distritais fazerem de tudo para que as diferenças com o contexto profissional não sejam tão significativas, todos sabemos que são contextos completamente diferentes e que, obviamente, elas estão à vista de todos”. O jogador da equipa de Ribeira de Frades, afirma ainda que, caso tivesse a oportunidade de falar com alguém com algum tipo de “preconceito” com o futebol distrital, daria o exemplo dos casos de grandes jogadores e treinadores que de lá saíram. “Os exemplos de jogadores e treinadores que começaram em patamares inferiores são o melhor argumento para confrontar essas pessoas. Com a força do seu trabalho e da sua dedicação e, claro, oportunidades de se mostrar em patamares superiores, conseguiram chegar longe, estando hoje em dia ou tendo jogado/treinado no futebol profissional. Temos alguns casos recentes de sucesso, por exemplo Vasco Botelho da Costa, treinador que esta época levou o Futebol Clube de Alverca ao principal escalão do futebol português e que já assinou pelo Moreirense Futebol Clube para assumir a equipa na próxima época, que iniciou o seu trajeto como treinador em patamares inferiores. Este é apenas um exemplo de alguns que podia dar tanto de jogadores como de treinadores”.

No fundo, o futebol distrital, por mais debates, questões, entraves ou divergências que existam, nunca deixará de ser a festa bonita que é, uma vez que, enquanto se tratar de um contexto onde jogadores e treinadores pouco ou nada recebem para ali estar a jogar e a treinar sempre com a maior competência possível, enquanto os adeptos se dirigirem todos os fins de semana aos recintos desportivos do clube da sua terra e criarem ambientes mágicos, a chama que faz este contexto inferior do futebol vivo jamais se vai apagar. O futebol é paixão, equipa, união, família, e enquanto assim for, não importa o jogador, equipa ou escalão, se a bola continuar a rolar, o amor pelo jogo e a paixão com que se vive tudo isto, continuará bem viva. Não é por acaso que se chama “desporto rei”.