O pesadelo que persiste no coração de África

Uma das maiores crises humanitárias de sempre

No coração do continente africano, no meio de vastas extensões de terra e florestas, desabitadas por humanos e repletas de vida selvagem, jaz uma imensidão de recursos. Porém, numa terra de diamantes e marfins, não há uma única incubadora para recém-nascidos. Na República Centro-Africana (RCA), país com o tamanho da França, mas com apenas cinco milhões de habitantes, tão escassamente povoado, seria espectável que estivesse a prosperar, no entanto, tem vindo a fracassar.

Independente desde 1960, mas apenas com eleições democráticas três décadas depois, a RCA é um dos países mais pobres e menos desenvolvidos do globo. Apesar de possuir uma imensidão de riquezas, é a instabilidade e a violência que predominam no seu território e na vida dos seus habitantes. Trata-se da terceira maior crise humanitária do mundo, depois do Iémen e da Síria, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU).

Depois de golpes de Estado e guerras civis, o ano de 2013 marcou a história do país, que é palco de um dos conflitos mais ignorados deste século. Uma coligação de milícias muçulmanas, a Seleka, assolou o território, violando, matando e incendiando os sítios por onde passava. Derrubou o governo, dominado por cristãos, e desencadeou uma guerra civil que, no meio do fumo dos incêndios, provocou a morte de milhares de pessoas e a deslocação de tantas outras.

A maioria cristã conseguiu assumir o controlo de grande parte do território e as milícias da Seleka desmembraram-se em vários grupos, gerando o caos. A resposta não tardou em chegar e uma nova coligação emergiu – os anti-Balaka – uma aliança de combatentes cristãos, que veio alastrar a onda de violência a todo o país. Cidades atormentadas pela violência e habitantes com graves carências, sempre atentos ao som dos disparos ou ao ruído provocado pelo voo de helicópteros militares. É esta a realidade do país.

Um rebelde muçulmano mantém-se de guarda, enquanto homens e rapazes escavam numa mina perto de Bambari. Fonte: National Geographic

Um rebelde muçulmano mantém-se de guarda, enquanto homens e rapazes escavam numa mina perto de Bambari. Fonte: National Geographic

Membros das milícias cristãs anti-balaka, em Bocaranga. Fonte: DW

Membros das milícias cristãs anti-balaka, em Bocaranga. Fonte: DW

As crianças são um dos grupos mais afetados pela crise humanitária, e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) tem vindo a trabalhar no país, ajudando a vacinar a população, a formar professores e a criar escolas. No entanto, a violência indiscriminada dos rebeldes contra comunidades inteiras continua a ser uma barreira ao seu trabalho. “Na maioria das vezes, os grupos armados atacam civis em vez de se atacarem mutuamente. Eles atacam funcionários e instalações de saúde e educação, mesquitas e igrejas, bem como sítios onde as pessoas deslocadas procuram abrigo”, relata a UNICEF.

Alunos começam o dia numa escola de Bangui encerrada durante dois anos devido aos combates. Os rebeldes destruíram escolas em todo o país, afetando 425 mil crianças. Já havia escassez de professores antes dos combates (cerca de 1 para 89 alunos) e muitos dos que fugiram do conflito não regressaram.  Fonte: National Geographic

Alunos começam o dia numa escola de Bangui encerrada durante dois anos devido aos combates. Os rebeldes destruíram escolas em todo o país, afetando 425 mil crianças. Já havia escassez de professores antes dos combates (cerca de 1 para 89 alunos) e muitos dos que fugiram do conflito não regressaram.  Fonte: National Geographic

Um pai descansa com o filho no hospital pediátrico de Bangui, na capital da República Centro-Africana. Fonte: Unicef

Um pai descansa com o filho no hospital pediátrico de Bangui, na capital da República Centro-Africana. Fonte: Unicef

Crianças em Dekoa, na República Centro-Africana. Fonte: MINUSCA

Crianças em Dekoa, na República Centro-Africana. Fonte: MINUSCA

Se à primeira vista o conflito parece uma guerra entre comunidades étnicas e religiosas, ao analisarmos o que está por trás disso, percebemos que quem pratica a violência explora uma espécie de solidariedade étnica ou religiosa para recrutar jovens combatentes e que os grupos rivais assumem o claro objetivo de ocupar o poder. Trata-se de um conflito, sobretudo, político, onde o governo legalmente eleito só controla 1/5 do território.

O refúgio no meio do conflito

Após anos marcados pela violência, muitas famílias viram-se obrigadas a fugir do seu país. O destino é, principalmente, para os países vizinhos, como os Camarões e a República Democrática do Congo.

Uma mulher é obrigada a sair da sua casa após uma onda de violência ter assolado a cidade de Bambari. Fonte: ACNUR

Adama, de 40 anos, refugia-se na Igreja de São Pedro, em Boali, para fugir ao conflito na cidade. “É difícil viver aqui. Temos dormido nos bancos da igreja.” Mais tarde, Adama conseguiu fugir para os Camarões. Fonte: ACNUR

Cristãos rezam numa igreja de Bambari, onde os muçulmanos incendiaram centenas de casas. Em muitas cidades, as igrejas serviram de refúgio a cristãos e muçulmanos em fuga.  Fonte: National Geographic

Campo de refugiados na República Centro-Africana. Fonte: ONU

Para escapar aos combates, dezenas de milhares de moradores de Bangui refugiaram-se em destroços de aviões e pistas de aterragem de um aeródromo protegido pelas forças da ONU.  Fonte: National Geographic

O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) tem acompanhado a situação e está presente tanto na RCA, como nos países vizinhos. Apesar da falta de financiamento, o seu trabalho passa por prestar cuidados básicos de saúde, distribuir itens e ‘kits’ básicos de sobrevivência e construir novos abrigos para refugiados.

Os "Ronaldos" da MINUSCA

Face à violência desmedida e ao número crescente de refugiados, vários países vizinhos foram tomando medidas para conter a violência na RCA. Em dezembro de 2013, a União Africana, com o apoio de vários países e do Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU), criou a MISCA – Missão Internacional de Apoio à República Centro-Africana. O objetivo desta missão seria estabilizar o país após o golpe de Estado de março de 2013 e a violência subsequente. Contudo, face ao escalar das tensões, o CSNU reforçou a sua posição e estabeleceu, a 10 de abril de 2014, a MINUSCA – Missão Multidimensional Integrada das Nações Unidas para a República Centro-Africana, com vista à manutenção da paz e à proteção dos civis do país.

Portugal contribui para a missão desde 2017, onde a companhia de tropas especiais do Exército Português opera a partir da capital, Bangui, como Força de Reação Rápida. O papel das Forças Armadas portuguesas é reconhecido e tido como um elemento importante e diferenciador na missão. Balla Keita, líder da MINUSCA, já demonstrou, em entrevista à RTP, o “respeito pelos portugueses”, bem como o reconhecimento do profissionalismo dos militares lusitanos. “Ajudaram-me a conseguir muito nesta missão”, refere.

“Estão sempre nas missões difíceis e quando digo que eles são os meus ‘Ronaldos’, é a verdade, não são apenas palavras. São grandes jogadores desta equipa que temos aqui. Foram sempre enviados para as missões mais difíceis, eles vieram cá para isso e nunca falharam. Cumprem sempre a missão.”

Fotografia: Público

Fotografia: Exército Português

Fotografia: ONU

Fotografia: Público

Fotografia: Público

Fotografia: Exército Português

Fotografia: ONU

Fotografia: Público

Para os militares, que testemunham a realidade vivida na RCA, o elogio é “gratificante e, principalmente, motivador.” Às vezes, não tão fácil de descrever. “É um sentimento muito forte, um orgulho muito grande, é saber que estamos a fazer o melhor pelos outros.”

Durante a missão, de “grande responsabilidade”, relembra-se aquilo que foi aprendido durante o curso. “Desde o início do meu curso que nos ensinaram a olhar para tudo, para todos os pormenores, porque a qualquer momento podemos entrar em contacto com o inimigo.”

“Quer o condutor, quer o chefe de viatura, vai tudo com concentração máxima e não há espaço para brincadeiras.”

Os momentos mais marcantes passam pelas projeções, em que “não têm água”, inicialmente, “não têm comida, porque a cozinha ainda não está montada” e comem “ração de combate.” “Estamos lá com pessoas que são consideradas, para nós, irmãos. Fazem deslocamentos de 14/15 horas debaixo de um calor horrível, suados, cansados, depois de dormir duas a três horas e aí é que mostramos do que somos feitos.”

“É quando não temos nada e estamos ali verdadeiramente e podemos estar a apoiar-nos uns aos outros: primeiro como equipa, depois como grupo e depois, no final, como força.”

Defrontam-se com vários desafios, mas para um dos “Ronaldos”, o maior é “ter de ajudar um país onde os grupos armados vão sempre saber de todas as ações” que vão ser feitas, pois o próprio Governo tem membros desses grupos. No entanto, é algo que vale a pena pela sensação de dever cumprido e pela “cara de orgulho dos amigos e familiares” na chegada a casa.

“O mais importante é saber que, numa fase final, cumpri a minha missão, que fui capaz de ultrapassar as adversidades e que consegui aguentar, que fui capaz. Que consegui ajudar, da forma que pude e me foi possível, aquelas pessoas, porque só a nossa presença já os ajudava e fazia com que eles se sentissem mais seguros.”

A presença e a atitude dos militares portugueses marcavam a população da RCA. Em zonas onde eram feitas as projeções, ficavam “contentes” quando os viam, mas também “assustados”, pois poderia estar a acontecer alguma coisa. Em zonas que já haviam sido operadas anteriormente, as pessoas agradeciam através de “gestos”, como “colocar ramos de árvores na estrada”, de forma a obrigar os lusitanos a “ficar nas aldeias” e faziam “sinal de comida.” “Pediam-nos água, biscoitos.”

“Aquilo lá é muito mau. Uma miséria muito grande.”

Fica a sensação de dever cumprido, o profissionalismo, o humanismo, a coragem, a superação e a realização pessoal, sem duvidar que “voltaria”, para sentir, de novo, “todas aquelas sensações” que só lá se consegue ter.

Um futuro incerto

“Na minha opinião, a RCA muito dificilmente terá melhoras, porque não é só com a nossa presença que aquele país vai melhorar, é preciso que os líderes daquele país o queiram fazer, e não está a ser o caso”, considera um dos militares.

Em fevereiro de 2019, o Presidente Faustin-Archange Touadera firmou um acordo, onde conseguiu reunir os 14 maiores grupos rebeldes e estabelecer pontos para o fim da violência e o restabelecer da paz. No entanto, a paz tarda em chegar. A violência continua e a RCA ainda tem um longo caminho a percorrer até voltar a ter estabilidade.

Se a intervenção da ONU e o sucesso das eleições de 2020 pareciam trazer esperança para o país, a verdade é que as tensões parecem ter aumentado entre as milícias, que continuam a praticar atos de violência indiscriminada.

Fotografia: ONU

Fotografia: ONU

É da responsabilidade da comunidade internacional provar, através de ações, que os habitantes da RCA são parte da humanidade comum e do futuro partilhado.