Um olhar sobre a apicultura

na melaria alentejana

Quem vive no meio rural, conhece bem as carrinhas de caixa aberta que passam carregadas com caixas de várias cores e tampas de metal, que marcam o início da primavera. Nesta altura, homens e mulheres de fatos brancos e chapéus envoltos em rede, deslocam-se para os campos onde, em zonas mais remotas, as colmeias repousam em atividade. A apicultura, prática responsável não só pela produção de mel, mas também por manter o equilíbrio entre ecossistemas e preservar a biodiversidade, é uma técnica milenar que exige muitas horas de trabalho e esforço físico do apicultor.

Com paixão e dedicação – e uma boa dose de paciência – estes encantadores de abelhas entregam-se ao ofício de corpo e alma. Desde o campo, estradas, casas até aos armazéns e melarias – onde o mel é tratado e armazenado. O trabalho dos apicultores parece não ter um grande impacto nas nossas vidas. Contudo, são essenciais ao mundo rural e à vida em geral.

As abelhas garantem a segurança alimentar a nível global, tudo através do processo vital da polinização, além de manterem o equilíbrio entre ecossistemas.

Existem vários tipos de mel, variando conforme os atores envolvidos ao longo do processo, desde as abelhas e marimbondos, à floração e terrenos. A cor e sabor deste produto natural e único está diretamente ligada à flora escolhida para a produção.

É na região do Alentejo que se concentra grande parte da atividade e de apicultores. Aqui, a especialidade é o mel de rosmaninho ou de alecrim, que confere um sabor suave e uma cor mais clara. É o tipo de mel mais recomendado como adoçante natural e diz-se até ter propriedades medicinais.

A abundância de rosmaninho nesta região, é um ponto atrativo para apicultores vizinhos, especialmente oriundos de Espanha, pela sua qualidade superior. No entanto, apenas procuram coletar o pólen destas flores, dando continuidade à produção melífera no país vizinho.

Flora melífera - Florestas.pt

Flora melífera - Florestas.pt

Apiário

Apiário

Colmeia

Colmeia

Melaria Artesanal

Melaria Artesanal

Melaria Artesanal

Manuel Ribeiro (nome fictício) escolheu a apicultura como hobby há mais de 40 anos atrás. Hoje, continua a atividade na sua própria melaria artesanal no Alto Alentejo.

"Eu faço isto desde os 14 anos, e posso deixar muita coisa na vida, mas não deixo as abelhas. Eu gosto mesmo disto."
Manuel Ribeiro, apicultor amador

Apesar de não ser a sua profissão, Manuel entrega-se à atividade com paixão e é isso que o faz continuar.

Abriu-nos os portões da sua melaria em altura de extração do mel para acompanharmos um pouco os procedimentos.

À chegada, somos recebidos de imediato pelos zumbidos das responsáveis por todo o fenómeno - as abelhas. Voam junto à porta à procura de uma entrada para chegar ao mel. O zum-zum é abafado pelo som da (pouca) maquinaria mal entramos na melaria, que há já trabalha há várias horas.

O apicultor amador conta com a ajuda de um pequeno grupo de amigos que partilha o mesmo gosto pelo trabalho. Cada um destinado à sua etapa do ciclo. Manuel diz que assim as tarefas são desempenhadas com mais eficiência. Fez questão de frisar que o trabalho “não é só isto, então e o que está para trás?” comentou.

Pois bem, a produção de mel é a que mais trabalho dá e menos rendimento garante aos apicultores.

Preparação das colmeias

Quadros prontos para a reutilizar na produção do próximo ano

Quadros prontos para a reutilizar na produção do próximo ano

Colmeias viradas para a nascente

Colmeias viradas para a nascente

Após a desoperculação

Após a desoperculação

Prontos para o próximo passo

Prontos para o próximo passo

Interior da centrifuga

Interior da centrifuga

Quadros no interior da máquina

Quadros no interior da máquina

O ciclo

É ainda no inverno que se inicia o processo, com uma vistoria detalhada do material do ano anterior, passando por uma limpeza e, caso necessária, renovação das molduras dos favos. É habitual adicionarem caixas novas para receber as novas colónias de abelhas.

Pixabay

Pixabay

Quando começam os primeiros sinais de primavera, inicia-se o transporte das colmeias para os apiários nos campos abundantes em flores e com boa exposição solar.

As colmeias devem ter uma orientação cardeal específica e serem dispostas sempre viradas para a nascente. Desta forma, as abelhas já sabem que o primeiro raio de sol a nascer, é sinónimo de início de um novo dia de trabalho.

Durante os meses de primavera, os apicultores visitam os apiários com regularidade para se certificarem de que as abelhas estão saudáveis e livres de parasitas, como a Varroa, e, se estiverem num bom ano, acrescentarem mais caixas para continuar a produção.

Varroa, parasita mais comum das abelhas / Alex Wild, UT Austin

Varroa, parasita mais comum das abelhas / Alex Wild, UT Austin

Extração do mel

Chega a hora de fazer a extração do mel dos quadros. Procede-se então ao carregamento das colmeias dos campos diretamente para os armazéns ou melarias. O calor já se faz sentir, os campos começam a perdem a cor verde e a ficar torrados. Não há aragem que corra pelos campos muito menos por dentro dos fatos brancos e máscaras de rede que protegem das picadas.

Desoperculação

Já na melaria, limpam-se as abelhas e preparam-se os quadros para o primeiro passo: a desoperculação. É a remoção das “tampinhas” de cera que seguram o mel nos orifícios - os chamados alvéolos.

Abelhas

Alvéolo / BEEsweet

Alvéolo / BEEsweet

Este processo tem sido adaptado conforme as inovações que surgem. Na melaria de Manuel, utiliza-se a máquina de ferros que em segundos abre os alvéolos.

Desoperculação

Desoperculação

Contudo, não deixam para trás o garfo de desopercular que, mesmo que mais devagar, chega a todos os cantos. Assemelha-se a um pente de agulhas muito juntas que perfura a cera e levanta as tampas feitas pelas mestres abelhas.

Centrifugação

Processo de centrifugação

Processo de centrifugação

No processo de centrifugação, os quadros são submetidos a mais de 100 rotações por minuto (RPM) dentro das máquinas centrifugas, como mostrado no vídeo acima.

A melaria de Manuel está apetrechada com duas máquinas centrifugas, uma leva 60 quadros de uma vez, a outra 40. De 20 em 20 minutos, António, um dos colegas trabalhadores encarregue desta secção, controla a maquinaria e após escoarem todo o mel, troca os quadros.

Em seguida, o produto flui para um recipiente maior, onde é filtrado várias vezes. Repousa num "banho-maria", como lhes chamaram os apicultores. Este processo com água quente, permite que as impurezas, como restos de cera, se concentrem à tona do mel.

Agora, escorre um fio de ouro que segue direto para o depósito onde vai ficar a repousar durante uma noite, antes de ser transferido para bidões que levam 300kg, e posteriormente, numa fase final, enfrascados.

Pós-extração

O processo não termina por aqui. Antes de recomeçar o ciclo outra vez, tem de se dar destino aos resquícios da atividade. Os restos de cera, quadros partidos ou deformados são queimados, a cera é reaproveitada depois de derretida, para que possa servir para fazer novas placas de cera.

Os desafios da apicultura

Incêncios / António Gaspar

Incêncios / António Gaspar

Cortiços / Monte do Mel

Cortiços / Monte do Mel

Interior de um cortiço / Monte do Mel

Interior de um cortiço / Monte do Mel

A prática da apicultura requer uma adaptação constante aos desafios que vão surgindo. Desde a seca, às ameaças - como a espécie invasora da vespa asiática - e às alterações climáticas, o setor deve ter cuidados que preservem a atividade.

Agricultores do Alto Alentejo «apreensivos» por falta de chuva | Portal  Agronegócios.eu

Seca / Agrotec

Seca / Agrotec

Os apiários encontram-se dispersos pelos campos em redor das localidades. Manuel explicou que prefere não manter todos no mesmo local sob pena de perder tudo em caso de incêndio.

A região já foi assolada por violentos incêndios em 2004, que resultaram na perda de dezenas de apiários. As graves secas dos últimos anos aumentaram os riscos de incêndio. e diminuíram substancialmente a produção melífera.

João Carlos foi apicultor durante muitos anos, desde cedo que ajudou familiares e amigos que lhe passaram o gosto que o levou a profissionalizar-se na área. Partilha a mesma opinião de Manuel: manter o material no mesmo sítio é um risco demasiado grande. Geralmente, os apiários não são de fácil acesso, em caso de incêndio, é impossível.

João leva-nos a visitar um apiário. Já é tarde, o sol já se põe e o antigo apicultor pediu que não se fizesse ruído. Explicou que as abelhas obreiras no interior da colmeia estavam em funções de limpeza e de coleta. "Elas não dormem" afirmou.

Quando entrou na atividade e começou a produzir, foi o início da época de substituição dos cortiços pelas caixas que agora se veem.

Os chamados cortiços eram feitos através da cortiça extraída dos sobreiros - árvore abundante na região - com um único corte na vertical.

Apesar da sua aparência tipicamente artesanal, os cortiços não eram práticos e não eram tão fáceis de manusear ou transportar, daí a substituição pelas caixas. Manuel Ribeiro reforçou esta ideia, diz que numa caixa consegue "identificar logo a rainha, num cortiço é impossível."

Por sua vez, as caixas facilitaram em muito a vida dos apicultores em vários pontos do ciclo. Para efetuar a transumância de colmeias, era impensável mover cortiços. João explica de que se trata o fenómeno:

Vídeo áudio explicativo / João Carlos

Vídeo áudio explicativo / João Carlos

"Das colmeias podemos tirar muita coisa, o mel, pólen, própolis e veneno de abelha. Destes todos, o mais difícil de extrair é o mel"
João Carlos, antigo apicultor

Falta de apoios ao setor apícola

A somar à lista de perigos para esta atividade, está ainda a falta de apoios. A carência de medidas que visem melhorar as condições de trabalho, bem como assegurar algum rendimento, levaram à criação de associações de apicultores.

Associações como por exemplo exemplo a associação Apilegre, da qual fazem parte Manuel e João há vários anos, unem-se para combater estes desafios e muitas dizem que "a apicultura está a ser ignorada pelo Ministério da Agricultura". Não há medidas que visem a proteção da atividade nem que assegurem a sua continuidade.

Em entrevista à Sic Notícias, José Vicente, apicultor da região, confessou que nunca viu um ano ser tão mau para a produção como 2023.

A falta de apoios é também um dos fatores que menos atrai novos profissionais na área, o que levanta alguma preocupação em relação ao futuro da apicultura. Raros são os jovens que se interessam e ponderem seguir pelo setor, devido à falta de ajudas que tem.

“Tudo isso faz com que este setor esteja a ficar cada vez mais pobre, com cada vez gente mais velha e sem grande investimento”
José Vicente, apicultor

“Tudo isso faz com que este setor esteja a ficar cada vez mais pobre, com cada vez gente mais velha e sem grande investimento”
José Vicente, apicultor

Pixabay

Pixabay

João Neto, apicultor e técnico da Associação Apilegre, apontou para o esquecimento do setor e a falta de medidas protetoras. Estando “completamente dependentes do clima”, não têm qualquer indicador de rendimento do ano seguinte.

Não há qualquer tipo de segurança nesta atividade e, quando vemos as outras atividades agrícolas, nomeadamente a pecuária, a receberem apoios por isto ou por aquilo, é completamente inadmissível e uma discriminação que não se percebe
João Neto, apicultor

Só este ano 2024 é que o setor está a ver algum apoio por parte do Ministério da Agricultura com as medidas agroambientais, e, até ver, alguma possibilidade de obtenção de algum retorno.

O inverno chuvoso deixou os campos bem fertilizados e floriram a tempo da polinização das abelhas. Os apicultores estão confiantes de que o ano vai ser próspero em termos de produção e com sorte, pode cobrir a quebra do ano que passou.

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Pólen / Pixabay

Pólen / Pixabay

Texto: Ana Isabel Graça

Fotografia: Ana Isabel Graça

Imagens: Pixabay