Vale do Ave: Os rostos desconhecidos da industrialização

Dossier Documental

05:00

O despertador do relógio de Maria Olinda toca de forma frenética. A senhora coloca-se a pé, toma o pequeno-almoço e segue, ainda sobre a escuridão, rumo ao sobreiro do costume, onde o seu pai a espera para fazerem um percurso de aproximadamente 42 minutos até à fábrica onde trabalha.

Morava numa Vila das Aves marcada pela industrialização e emigração. “Vivia-se naquela altura muito mal porque as pessoas não se conseguiam empregar”, contou em entrevista.

Antiga paisagem de Vila das Aves. Fonte: Aves Canal

Maria Olinda tinha completado apenas a quarta classe, pelo que desde cedo começou a aprender costura. “Um senhor tinha uns teares em casa e aprendi lá”, relatou. Foi ele mesmo que a conseguiu empregar na primeira fábrica em que trabalhou, a de São Romão.

Cabine elétrica localizada em frente à Fábrica de São Romão. Fonte: Entre-ambos-os-aves

Cabine elétrica localizada em frente à Fábrica de São Romão. Fonte: Entre-ambos-os-aves

A primeira experiência de trabalho acabou quando o patrão juntou o turno das 6h às 14h e o das 14h às 22h no mesmo horário, numa tentativa de salvar a fábrica, após a ausência de trabalho. “Fechou passado algum tempo”, recorda Maria Olinda.

A segunda fábrica que percorreu foi em Macavio. O trabalho foi arranjado após um pedido ao irmão que era encarregado de armazém nessa local. Contudo, o mesmo episódio sucedeu-se, e após a união de turnos, Maria Olinda acabou por ser despedida pela falta de trabalho.

Com 25 anos, e sem emprego, foi a mãe de Maria Olinda que a conseguiu empregar numa fábrica em Riba de Ave, denominada de Fiação e Tecidos Oliveira Ferreira S.A. “A minha mãe arranjou a meter-me lá através de primos, um era mestre da tecelagem”, afirmou.  

Foto gentilmente cedida por Maria Olinda
Foto gentilmente cedida por Maria Olinda

Fiação e Tecidos Oliveira Ferreira S.A

Riba de Ave

A Fiação e Tecidos Oliveira Ferreira S.A foi obra de Narciso Ferreira, em colaboração com os filhos mais velhos, Alfredo, Delfim, Joaquim, José e Raúl. A fábrica fixou-se em Riba de Ave, no ano de 1909.

Segundo Maria Olinda, a atividade na fábrica dividia-se em três turnos e oito secções: tecelagem, fiação, preparação, revista das obras (o pano), tinturaria, serralharia, fiação fina e grossa. O seu principal objetivo era a produção de telas cruas e flanelas.

Fonte: Patrícia Silva

Fonte: Patrícia Silva

O encerramento definitivo da fábrica aconteceu em 2008.

De acordo com Nestor Borges, coordenador cultural da Fundação Narciso Ferreira, este deveu-se à “globalização e a liberalização dos mercados”, uma vez que havia dificuldades em “concorrer com as economias de leste onde proliferavam a mão-de-obra barata e o baixo custo da produção”.

Para Raúl Ferreira, diretor da Fundação Narciso Ferreira, uma das razões do fecho da Fiação prendeu-se com “a dificuldade surgida com as cobranças das vendas para Angola e Moçambique”, um dos principais mercados, a par com o português.



Fonte: Patrícia Silva

Fonte: Patrícia Silva

Na chegada à nova fábrica, Maria Olinda foi colocada nos teares, visto que “era aquilo que sabia fazer”. Durante o percurso no estabelecimento têxti, foi responsável, no seu dia a dia, por dezasseis teares. “Colocava a lançadeira, soltava-se os teares, que trabalhavam e tinham um desenho que depois mudava as cores”, explicava saudosa. Contudo, a própria admite que o trabalho que executava não era fácil: “Os teares fazem diferença uns de outros. Quando ia soltar um tear tinha medo. Depois dava arrebentadelas. Das lançadeiras saia uma farpa e o tear ia todo, pelo que tinha de voltar a meter os fios”, conta com a voz alteada enquanto gesticulava.

Quando o relógio marcava as 14h, Maria Olinda e as colegas dirigiam-se ao refeitório, onde recebiam um prato de sopa oferecido pelo patrão, do qual não possui grandes recordações. “O patrão não passava bola ao operário”, contou, “o nosso patrão era do Porto, vinha ali raras vezes, quando ia à tecelagem passava com as mãos no bolso”, acrescentou.

"O patrão não passava bola ao operário."
Maria Olinda

Do trabalho recebia 65 contos quinzenais. Com uma família de dois filhos e um marido a trabalhar na fábrica apelidada de “Miséria”, o dinheiro, recebido por ambos, era dividido.“Distribuía um dinheiro para vida e outro para ir para o banco”, revelou.

A saída da fábrica deu-se quando tinha 55 anos. “Fui para o fundo de desemprego porque estavam a mandar pessoas embora” devido à falta de trabalho.


14h00

Quando Maria Olinda sai do trabalho, Maria Arminda prepara-se para entrar no segundo turno, num outro edifício dedicado ao têxtil da região, a Fábrica de Fiação de Rio Vizela, em São Tomé de Negrelos, onde trabalhou desde os 20 anos. Consigo leva as sandes que costumava lanchar a meio da tarde. “Quando era verão, haviam tílias na parte de fora do edifício e nós íamos para debaixo delas lanchar”, afirmou.

O emprego foi arranjado pelo seu pai, após um incêndio na última fábrica onde Maria Arminda tinha trabalhado. Com a 4ª classe e prática em costura, assumiu o cargo de bobinadeira , quando chegou ao novo emprego. O trabalho baseava-se em “dar os nós em fio à mão”, que iam passar por três bobines para fazer fios maiores, de forma a serem utilizados nos teares para a confeção do tecido, como relatou. Porém, ao longo da estadia na fábrica, o seu cargo foi-se alterando e acabou por servir de ajudante de armazém e urdidora.

Fábrica de Fiação e Tecidos do Rio Vizela

São Tomé de Negrelos

A fábrica de fiação e tecidos do Rio Vizela constituiu-se a mais antiga unidade fabril do têxtil em Portugal. Gozava de 135 mil metros quadrados de extensão e foi responsável pelo desenvolvimento económico e social da região.

Implementou-se no terreno de Silvério da Silva e Castro, e partiu de uma sociedade estabelecida por onze homens de negócios do Porto, selada em 1845.

Fonte: Patrícia Silva

Fonte: Patrícia Silva

O objetivo da criação da indústria era “o estabelecimento de uma fábrica de fiação de algodão, movida por água, nas margens do rio Vizela", como retrata o livro “Fábrica de Fiação e Tecidos do Rio Vizela: as origensde Jorge Fernandes Alves, Silvestre Lacerda.

Três anos após o começo da atividade, a fábrica contava com 58 homens, 54 mulheres e 35 rapazes, um total de 147 pessoas. A própria linha ferroviária foi construída em 1883 devido à fábrica, assim como a rua que ligava São Tomé de Negrelos à sede de concelho, Santo Tirso.


Fonte: Patrícia Silva

Fonte: Patrícia Silva

Ao longo do tempo, a gerência das fábricas foi alterada. E em 1973, Narciso Machado Guimarães adquiriu a posse da fábrica, que se juntou a uma coletânea de outras três que já possuía.

Segundo Maria Arminda, a fábrica possuía quatro turnos e setores de fiação, tecelagem, tinturaria e acabamento. Para além do trabalho com o tecido, contava com serralheiros, eletricistas e picheleiros, que arranjavam as máquinas.  




Fonte: Patrícia Silva

Fonte: Patrícia Silva

Após do falecimento de Narciso Machado Guimarães, o filho José Armando Pinto Machado Guimarães, em conjunto com os restantes irmãos, assumiu a direção da fábrica até 2001, ano em que fechou as portas.  Numa entrevista feita para o livro, José Armando mostrou descrença no setor têxtil, muito devido à concorrência do mercado chinês. “Temos de reconhecer que a concorrência por parte dos asiáticos é profundamente desleal, pois as suas condições de produção são completamente diferentes por razões históricas e sociais”, abordou.




Fonte: Patrícia Silva

Fonte: Patrícia Silva

Fonte: Santo Tirso com História (Foto 1), Mendoca.CO (Foto 2)

Fonte: Patrícia Silva (Foto 1), Entre Margens (Foto 2)

Fonte: Santo Tirso com História (Foto 1), Mendoca.CO (Foto 2)

Fonte: Patrícia Silva (Foto 1), Entre Margens (Foto 2)

O antes e o depois da Fábrica de Fiação e Tecidos do Rio Vizela

O antes e o depois da Fábrica de Fiação e Tecidos do Rio Vizela

Inserida no turno da noite, Maria Arminda recorda que as horas dos lanches podiam ser decididas pelas próprias, apesar de haver a necessidade de uma divisão equitativa, dado que “as máquinas não podiam parar”.  Todavia, arranjava sempre forma de conversar com as colegas. “Tinha muitas amigas. Dava-mo-nos todas bem”, afirmou.

O ambiente vivido durante a jornada diária de oito horas de trabalho era apreciado pela trabalhadora. “Falávamos e íamos para beira uma das outras”, relatou. De forma a retratar o bom ambiente vivido, Maria Arminda recorreu a um hábito do local: “Não tinha lá máquina de café, então levávamos à vez uma lata de Nescafé e uma garrafa térmica para todas”.

Do patrão, Maria Arminda não guarda muita proximidade, uma vez que não frequentava o local onde os trabalhadores estavam. De modo a comandar todo o trabalho, existiam as cargos de mestre, que “trabalhava no escritório”, e de encarregado, que “também trabalhava na produção”.

O espaço de grandes dimensões possuía ainda serviços para responder às necessidades dos funcionários. Havia uma cantina, onde se podiam alimentar, mas que apenas podia ser utilizada pelo turno normal, para o qual todas as funcionárias passaram após o início da ausência do trabalho. Do refeitório, Maria Arminda recorda a cozinheira: “Dividia a refeição de toda a gente”, afirmou, pelo que acrescentou que a refeição “era quatro euros" e ela, em conjunto com colegas, dividia o prato, o que dava dois euros a cada.

Devido à distância da qual muitas pessoas vinham, também um infantário foi instalado no local, situado num dos pavilhões à entrada do espaço, para os filhos dos funcionários. “Caso trabalhassem até às 22h , levavam os filhos a essa hora”, explicou Maria Arminda, que optou por não usufruir do serviço com os dois filhos.  Por outro lado, a empresa tinha um consultório médico, onde uma vez por semana, trabalhadores eram atendidos com consultas marcadas. Uma vez por mês, todos os empregados da fábrica tinham de ser consultados.

Contudo, a fábrica, com o tempo, acabou por entrar em falência. Os próprios funcionários assistiram ao desmontar da fábrica que ajudaram a construir. Maria Arminda conta que no início “foi tudo para o turno normal” e depois, perante a ausência de trabalho, as máquinas pararam e o trabalho a executar passou a ser tirar o fio das estantes, plastificá-lo e colocá-lo em paletes, para serem vendidos.  “Acabamos por limpar as secções todas”, contou com tristeza.

Com salários atrasados por três meses, os filhos de Narciso Machado de Guimarães, que coordenavam a empresa após a morte do pai, optaram por reunir todos os trabalhadores e comunicar-lhes o encerramento da fábrica. “Chamou o pessoal e disse que não dava mais”. A decisão foi digerida em choque por Maria Arminda: “Pensei que íamos trabalhar lá até chegar à reforma”, relatou.

"Pensei que íamos trabalhar lá até chegar à reforma."
Maria Arminda

Ainda em processo de encerramento, a empresa optou por colocar em fundo de desemprego alguns trabalhadores e enviar para outra fábrica que lhes pertencia, outros funcionários. Maria Arminda foi uma das selecionadas para rumar à Traineira, a outra têxtil dos Machado de Guimarães. À semelhança da grande fábrica junto do rio Vizela, também a empresa acabou por fechar.

A viver em São Tomé de Negrelos, é usual Maria Arminda passar pela fábrica que acolheu grande parte da sua vida. Quando passa pelo local, assume que fica “muito triste”. Quanto ao novo destino que uma parte da fábrica está prestes a ter, através de um investimento no valor de sete milhões de euros, por parte da empresa Hotelar -também voltada para o têxtil-, a antiga funcionária diz que não vai “igual”. "Agora vai ser mais moderno, as máquinas vão ser diferentes”, rematou.


14h55

Cinquenta e cinco minutos após a entrada de Maria Arminda ao trabalho, Paulo Silva, vestido com a habitual farda verde acastanhada, apanha o comboio no apeadeiro de Pereirinhas, situado no meio da fábrica onde trabalha, a fábrica têxtil Vizela, Teviz. Na companhia do pai, regressa a Vila das Aves, após um dia de trabalho na urdideira da fábrica, das 7h às 15h.

Paulo Silva no local de trabalho

Foto gentilmente cedida por Paulo Silva

Foto gentilmente cedida por Paulo Silva

Entrou na empresa em Moreira de Cónegos, do concelho de Guimarães, quando tinha apenas 14 anos. O seu pai já trabalhava lá e levou-o. “Fui a uma entrevista”, disse, ao que acrescentou ,“naquele caso era uma entrevista geral, a fábrica metia as pessoas uma vez por ano e eu fui lá a uma entrevista com muita gente”. Da experiência de entrada recorda, “perguntavam se estávamos dispostos e contentes por ir trabalhar".

No ingresso na fábrica, Paulo Silva começou por ser ajudante a urdidor. “Era aquele que faz os chamados ramos, que é, meter bobines de fio, por cores e quantidades, numa plataforma. Depois, isso vai para a máquina e quando levar a trama do fiar faz o tecido, o design”, sintetizou. Após algum tempo, passou a urdidor, onde começou a operar uma urdideira, responsável pela coloração num desenho específico, de modo a fazer o pano.

A fábrica, tal como todas na região, destinava-se ao trabalho com tecidos, de modo mais concreto, para fins de decoração e camisaria, destinadas a empresas como a “Petratex” e aBurberry”.

Foto de amostras de tecidos utilizados na fábrica

Amostras de tecidos utilizados na fábrica. Fonte: Ruifret

Amostras de tecidos utilizados na fábrica. Fonte: Ruifret

Segundo Paulo Silva, um aproximado de 800 pessoas trabalhava no local. Desse modo, a fábrica gozava de inúmeros serviços de apoio a trabalhadores, tal como uma loja de produtos alimentares, uma cantina e um posto médico recorrente, com enfermeira e médico.

Tal como Maria Olinda e Maria Arminda, Paulo Silva apenas via o patrão, João Ferreira Magalhães, uma vez por semana. “Não vou dizer que eram muito simpáticos. Eram q.b.”, admitiu.

Medalha oferecida por João Pereira de Magalhães aos funcionários. Fonte: Patrícia Silva

Medalha oferecida por João Pereira de Magalhães aos funcionários. Fonte: Patrícia Silva

Após cerca de 14 anos a trabalhar na Teviz, Paulo Silva optou por sair, dado que o ordenado de 65 contos mensais tardava em chegar. “Sai porque quis ir para outro lado, dado que na altura aquilo atrasava um pouco os pagamentos”, confessou. Os problemas financeiros foram gerados dado que “o mercado asiático fazia o mesmo tipo de tecido mais barato”, explicitou.

Apesar das inúmeras dificuldades, a fábrica não chegou a fechar. Paulo Silva não teve mais informações sobre o estabelecimento têxtil onde trabalhou.

Quase vinte anos após a saída da fábrica, Paulo revela desconhecimento sobre o estado atual do estabelecimento têxtil. De acordo com informações da Portugal Têxtil, foi instalada na antiga unidade industrial a empresa Polopique.


Fábrica Têxtil Vizela, Teviz

Moreira de Cónegos


Fonte: Patrícia Silva

Fonte: Patrícia Silva

Três rostos

Três fábricas

Três realidades

Uma região

Fonte: Santo Tirso com História

Fonte: Santo Tirso com História